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Queremos todas vivas

Como a sociedade, as leis e as instituições lidam com a questão dos feminicídios na Argentina

ANGÉLICA ALMEIDA
KETLYN ARAUJO
LÍGIA MORAIS

DE BUENOS AIRES

 

O rio tranquilo reflete a imagem de prédios e construções luxuosas em Puerto Madero, bairro nobre de Buenos Aires. Ao passar pela região fica difícil acreditar que aquelas águas calmas, com ares de cartão postal, já refletiram a cena de um crime em plena luz do dia. A médica Augustina Salinas, de 26 anos, foi assassinada a facadas pelo namorado, após quatro anos de relacionamento.  

Chiara Paz tinha 14 anos e um encontro marcado com alguns amigos, que não tiveram tempo de se despedir da garota. Após desaparecer, Chiara foi encontrada morta no quintal da casa dos avós do namorado, que assumiu a autoria do crime. Grávida de seu próprio assassino, Chiara deixou uma família inteira pedindo por justiça.

Augustina e Chiara são vítimas de um problema sistemático que não é exclusividade da Argentina, mas que vem levantando debates frente a questões sobre violência contra a mulher. Com uma população de quase 42 milhões de pessoas, uma mulher é assassinada a cada 30 horas na Argentina.

Mesmo que Augustina e Chiara não tenham mais voz para lutar pelo direito à vida, há quem faça isso por elas. Logo após o caso de Chiara vir à tona, o movimento Ni Una Menos (Nem Uma a Menos) surgiu como um grito de “basta” à violência de gênero. Jornalistas, ativistas e artistas usaram o espaço das mídias sociais para criar a hashtag #NiUnaMenos, que superou expectativas e saiu das redes para as ruas. Cerca de 300 mil pessoas foram à Praça do Congresso de Buenos Aires em sua primeira manifestação, no dia 3 de junho de 2015.

Em 2016 o Ni Una Menos tomou proporções diferentes, atingiu meios de comunicação e estabeleceu o evento do 3 de junho como parte do calendário dos direitos humanos. “Tudo isso vem da necessidade das mulheres reclamarem sua autonomia, essa palavra é a base do que significa o Ni Una Menos, vem com um ‘basta’, com um ‘não’; a violência se exerce para nos disciplinar”, diz Marta Dillon, jornalista e uma das fundadoras do movimento. Irrestrita a mulheres, a marcha uniu homens, famílias, crianças e outros grupos nas províncias e praças da Argentina gritando a uma só voz – por Chiara e por todas as outras.

O feminicídio não se trata “apenas” de um assassinato, mas de um assassinato que tem como pano de fundo a desigualdade de gênero e a transformação da mulher em objeto de posse do homem. Como explica Ana Maria Férnandez, psicóloga e fundadora da primeira cátedra de estudos de gênero da Universidade de Buenos Aires (UBA), muitos feminicídios são decorrentes da tomada de consciência das mulheres que, ao tentarem romper o relacionamento amoroso, são assassinadas pelos agressores.

Ana enxerga as relações sentimentais entre homens e mulheres como relações de poder. Ao passo que a sociedade não se reconhece como machista, mulheres não percebem o risco que correm. A maioria dos crimes não acontece nas ruas. Ao contrário do que ocorreu com Augustina e Chiara, a regra é que mulheres que são assassinadas por seus parceiros sofram os ataques em suas próprias casas.

O perfil das argentinas vítimas de feminicídio não leva em conta idade, cor ou classe social – para estar em risco, basta ser mulher. Já o responsável pelo crime costuma responder a um padrão: “São homens que não conseguem aceitar que essas mulheres os deixem, pensam que elas são sua propriedade. É difícil aceitar que seja tão simples, mas é assim”, lamenta Ana Maria Férnandez. Já no Brasil o cenário é um pouco diferente. Entre 2003 e 2013 houve um aumento de 54% no número de homicídios de mulheres, em sua maioria negras, pobres e de baixa escolaridade, ressaltando o problema da desigualdade social.

Por: Ethel Rudnitzki
Por: Ethel Rudnitzki

 

 

Encontro Marcado

A porta maciça na entrada do apartamento em frente à Avenida Rivadavia, na capital argentina, e as grades de ferro no meio das escadas garantem a segurança de quem está de passagem. Ada Rico olha distante, por um espelho estrategicamente colocado na diagonal, e consegue observar os visitantes nos degraus. La Casa del Encuentro, fundada por Ada, Fabiana Tuñez e Marta Montesano, em 2003,  é um espaço feminista onde se pretende trabalhar o empoderamento das mulheres e a articulação política de movimentos sociais.

“Consideramos que a violência de gênero, que afeta de forma direta a mulher, também atinge todo o entremeado social por trás da mulher vítima de violência”, comenta Ada. Ela pede para não tirarmos fotos das pessoas que estão ali – além do grupo feminista que se reunia naquele momento na sala principal, a equipe de voluntárias do centro atende mais de 150 mulheres por mês, dando assistência psicológica, legal e social a vítimas de violência sexista e a seus familiares. “Sempre dizemos que o feminicídio é o último estágio de uma cadeia de violências”, completa Ada.

Ada Rico co-fundadora da Casa del Encuentro é uma das lideranças nos avanços legais sobre feminicídio na Argentina. Foto por: Angélica Almeida
Ada Rico co-fundadora da Casa del Encuentro é uma das lideranças nos avanços legais sobre feminicídio na Argentina. Foto por: Angélica Almeida

Desde 2008, a Casa passou a fazer informes do número de feminicídios no país. A equipe monitora todos os dias mais de 120 meios nacionais e provinciais, além de agências de notícias. “Nós, da sociedade civil, nos baseamos em tudo que sai publicado nos meios de comunicação. Por isso dizemos que seguramente são muito mais”, afirma Ada. Esses dados não são publicados, por exemplo, em zonas rurais, onde não há meios de comunicação. Em 2015, foram levantados 286 casos de feminicídio.

“O mais impactante na Argentina é que, enquanto avançam os projetos das mulheres, os feminicídios seguem aumentando”, comenta Ana María Fernandez. De acordo com a psicanalista, não só a Argentina, mas a América Latina em geral sofre com o grande problema da falta de dados oficiais. No país, no dia 4 de junho, a Suprema Corte de Justiça encomendou à Secretaria da Mulher a elaboração do primeiro Registro Nacional de Feminicídios da Justiça Argentina. As estatísticas, referentes ao ano de 2014, registram 225 casos. Segundo a ONG La Casa del Encuentro, foram 277 mulheres assassinadas devido à violência de gênero.

 

Altos índices e pouco auxílio

“Em cerca de 20% dos feminicídios levantados já havia alguma denúncia prévia, ou seja, são mulheres que vão denunciar, acabam sem suporte do Estado e morrem”, afirma Ana María Fernandez. Em alguns municípios existem delegacias da mulher e instituições do Estado para serem feitas as denúncias, mas não há orçamento nem abrigos suficientes para as vítimas de violência.

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Ana María Fernandez é fundadora da primeira cátedra de estudos de gênero da Universidade de Buenos Aires (UBA) e escritora de quatro livros feministas. Foto por: Angélica Almeida

Nina Brugo, advogada e especialista em direitos das mulheres, também assume que a formação dos juízes e policiais é patriarcal, e é difícil lutar contra isso. “Muitas delegacias do país ignoram a denúncia de violência psicológica, por exemplo, porque não há capacitação específica para temática”, explica Ada, que vê pequenos avanços segmentados dentro do Estado. Há províncias em que o governo promove debates de gênero, mas se o ele não tem estrutura, não leva os projetos adiante, e é isso que tem acontecido. Faltam recursos econômicos também para as ONGs. “Fazemos tudo que podemos; temos a experiência, mas não podemos chegar à prática”, comenta Ada.

A fundadora da Casa del Encuentro afirma que deveria existir uma articulação geral do Estado e, para isso, seria preciso traçar um plano. É preciso entender a vítima de violência como parte de um todo. “Isso significa empoderar essa mulher, fortalecer, trabalhar a autoestima, tudo junto a seus filhos e filhas”. Dar suporte emocional, psicológico e legal a essas mulheres, além de incentivos governamentais gratuitos quando a vítima fizer uma denúncia também é essencial – dando-lhe abrigo para que ela possa estar segura.

 

Avanços legais, efetividade postergada

Um dos principais avanços de combate à violência sexista foi a Lei de Proteção Integral às Mulheres. Sancionada em 2009, ela reconheceu as diversas violências que atingem as vítimas (física, psicológica, sexual, econômica e patrimonial e simbólica), e previu um Plano Nacional de Ação integrando sete diferentes ministérios e secretarias do poder executivo nacional, além de jurisdições provinciais e municipais, universidades e organizações da sociedade civil.

Segundo Ada, apesar de ser uma das melhores leis existentes, ela nunca saiu do papel por falta de vontade política e recursos que viabilizassem sua efetividade. Programas de capacitação, lugares de abrigo, ações de assistência direta às vítimas; uma série de iniciativas não executadas. “Muitos feminicídios poderiam ter sido evitados, essa é a verdade. Agora realmente estamos esperando que se apresente o plano, que aconteça. A lei é muito boa, mas precisa se efetivar”, critica.

Enquanto parte da sociedade civil organizada, a Casa del Encuentro também exerce influência na criação, desenvolvimento, avaliação, correção e monitoramento de políticas públicas para as mulheres. Desde que iniciou sua incidência política, a ONG já apresentou três projetos de leis em favor das vítimas.

A primeira conquista foi em dezembro de 2012, com a alteração do  Código Penal argentino que passou a punir mais severamente crimes antes enquadrados como homicídios simples. “Isso foi muito importante porque, pela primeira vez, a justiça considerou que a violência de gênero é um delito. Portanto, quando se demonstra que a vítima viveu violência de gênero ao ser assassinada, o agressor recebe prisão perpétua”, reitera Ada.

A Casa apresentou ainda, em 2014, um projeto de lei de responsabilidade parental, que precisa ser votado pelo Congresso, determinando a perda automática da guarda dos filhos por parte do pai assassino. E mais recentemente, no último 30 de junho, foi entregue a Lei Brisa que trata da reparação econômica para os filhos e filhas, menores de 21 anos, que são vítimas colaterais do feminicídio. “Desta maneira estamos garantindo que esses filhos tenham uma obra social outorgada pelo Estado e possam continuar juntos. Muitas vezes a família não tem condições, são muitos filhos, e, além de perder a mãe assassinada pelo pai, acabam perdendo irmãos, o colégio, o bairro, os amigos”, explica Ada.

Sobre a Lei Brisa, ela enfatiza que foram contabilizados mais de 1600 menores de idade que são vítimas indiretas dos feminicídios e permanecem invisíveis socialmente. Por isso, o projeto defende que, em caso de ausência familiar, os menores abrigados recebam, em conta, um amparo econômico estatal que os possibilite levar adiante os estudos e projetos pessoais quando alcançarem a maioridade legal.

Perante a atual conjuntura política, Ada se diz esperançosa: “Nós da sociedade civil  temos que ter uma visão fora da política partidária. A mim não importa quem esteja no poder, porque, para mim, meu inimigo é o patriarcado. Temos o costume na Casa do Encontro de mirar no positivo, e ir para adiante. Um dia, alcançaremos”.

 

ANGÉLICA ALMEIDA, KETLYN ARAUJO E LÍGIA MORAIS são jornalistas e participaram do programa “Jornalismo sem Fronteiras” em Buenos Aires, para um mergulho de 10 dias no trabalho de correspondentes internacionais.

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