De um lado, manifestantes lutavam pelos direitos dos moradores e do outro, ocorria o desfile…

A rejeição à ditadura e o apoio a um desfile militar
Como entender uma nação que viveu o período ditatorial mais sanguinário da América do Sul, indo às ruas de Buenos Aires para assistir a um desfile militar?
Rafael, que preferiu não revelar seu sobrenome e presencia o evento há décadas afirmou: “Se trata de um dia importante para todos, civis e militares. Um dia para não haver separação entre estes.”
LETÍCIA TIOSSI
DE BUENOS AIRES
Ditadura argentina (1976-1983)- Contexto Histórico:
Em meio à tensão ideológica do período da Guerra Fria, uma articulação político-militar se concretizou entre países latino americanos. Articulação esta chamada de Operação Condor, onde, Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai, Bolívia e Brasil participavam.
Na teoria, o objetivo era o combate de organizações político-revolucionárias de orientação comunista, fazendo uso do compartilhamento de informações de sistemas de inteligência e de forças de repressão.
A operação, firmada na segunda metade da década de 1970, influenciou o início do período mais sanguinário da história argentina.
Em 1976, uma junta militar derrubou o governo de Isabelita Perón através de um Golpe de Estado. Com apoio majoritário da população e discursos de melhorias econômicas, o ditador Jorge Rafael Videla dizia estar realizando uma missão divina.
Sete anos se passaram.
E o que antes era considerado inaceitável se tornou ainda pior. A dívida externa, que em 1976, era de US$ 8 bilhões subiu para US$ 45 bilhões. Já a inflação anual, foi de 182% para 343%.
O número de desaparecidos cresciam a cada dia e o apoio ao regime ditatorial despencava.
Em 1982, com uma tentativa de reconquistar o apoio populacional e reacender o sentimento nacionalista, o governo argentino entrou na Guerra das Malvinas. Mas, a disputa de um território contra uma potência mundial como a Inglaterra não era tão fácil quanto parecia.
Sem condições físicas e psicológicas, com pouco mais de dois meses e mais de 100 mortos, os soldados latino-americanos se renderam aos ingleses.
A partir de então, as manifestações contra o governo regente cresceram ainda mais.
Em 1983, por fim, a situação econômica, social e política tornou-se ainda mais insustentável e o período ditatorial encerrou-se com a eleição de Raúl Alfonsín.
Trauma e resistência:
“Pegavam pessoas e desapareciam com elas, o que é muito pior do que matá-las, porque os parentes procuram por essas pessoas até hoje. Não sabem de tudo o que aconteceu, como foi, e pior do que isso, sabem que sequestravam mulheres grávidas, esperavam parir, depois jogavam elas de um avião em algum rio e ficavam com os bebês.” relata Mônica Yanakiew, brasileira e correspondente internacional em Buenos Aires da EBC.
Segundo uma das primeiras comissões de verdade do mundo, a CONADEP (Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas), cerca de 30 mil pessoas desapareceram durante os sete anos.
Grafite em homenagem aos desaparecidos na Ditadura Militar- Bairro La Boca em Buenos Aires. Foto: Letícia Tiossi.
Marcelo Larraquy, jornalista e historiador argentino, afirma que: “Dar por mortos como desaparecidos gerou a esperança de muitos familiares.” Larraquy também acredita que, o termo “desaparecidos”, criado pelos militares como estratégia jurídica, fez com que os argentinos lembrassem do que aconteceu no passado com maior trauma.
Na capital federal, o repúdio ao período militar mostra-se claro.
Além da conservação de centenas de centros de tortura, como a ESMA -maior centro de extermínio argentino- e Garage Azopardo, as pinturas e os nomes de assassinados estão sempre presentes nas ruas de Buenos Aires.
Sem dúvidas, o ano de 1977 também foi um marco para tamanha resistência do população até os dias de hoje.
Foto: Letícia Tiossi
No dia 30 de abril daquele ano, as mães que perderam suas filhas grávidas e seus netos, passaram a se manifestar na Plaza de Mayo reivindicando o aparecimento dos familiares e a prisão dos criminosos.
Desde então, a marcha acontece todas as quintas-feiras na praça, em frente à sede do poder executivo -Casa Rosada- e tornou-se conhecida mundialmente.
Marcha das Madres da Plaza de Mayo. Foto: Letícia Tiossi
Até julho de 2019, dentre 500 netos, somente 130 foram encontrados.
Hoje, além das mães -que já têm em torno de 90 anos- participam também cidadãos em geral.
Cármen Arias (77), irmã de um dos bebês desaparecidos garante “Nós vamos seguir com a marcha e quando todas se forem, os jovens vão continuar, porque isso não vai terminar nunca. Quando viemos à Praça de Maio é como se estivéssemos com os nossos desaparecidos.”
Madres da Plaza de Mayo- Foto: Letícia Tiossi.
Como entender então a presença da população argentina em um desfile militar?
Ao longo do processo de independência do país, o sentimento nacionalista dos argentinos foi construído.
Foi no dia 9 de julho de 1816, após seis anos do início das revoluções pró emancipação, que a Argentina se reconheceu independente da coroa espanhola. Nessa época, a bandeira argentina se tornou um grande marco para o reconhecimento da nação.
E, no dia 9 de julho de 2019, não poderia ser diferente. Casas, apartamentos e até automóveis expunham, através do tecido, a paixão pela pátria.
O desfile também contava com crianças. Foto: Letícia Tiossi
Naquela terça-feira, diversas atividades aconteciam nas principais avenidas de Buenos Aires. Entretanto, aquela com maior repercussão foi o desfile militar na Avenida Del Libertador, onde o atual presidente Maurício Macri estava presente.
O evento contou com o desfile de milhares de militares e espectadores. Estima-se mais de 3700 tropas, dentre elas, estava presente o Exército Argentino, com cerca de 1400 tropas. E, em 2016, a pesquisa do Instituto Ibarómetro apontou que 80,2% dos argentinos tinham “sentimentos negativos” em relação ao golpe de Estado de 1976.
Como entender uma nação que viveu o período ditatorial mais sanguinário da América do Sul, indo às ruas de Buenos Aires assistir ao desfile militar?
Rafael, que preferiu não se identificar com o sobrenome e presencia o evento há décadas afirmou: “Se trata de um dia importante para todos, civis e militares. Um dia para não haver separação entre estes.”
A princípio, a situação pode soar contraditória. Mas, no dia 9 de julho, os militares representam a história do país.
Líderes que participaram do processo de independência do país foram homenageados e os soldados da Guerra das Malvinas relembrados.
Homenagem aos soldados da Guerra das Malvinas. Foto: Letícia Tiossi.
A homenagem ao ocorrido de 1982 não representava uma adoração aos militares, mas sim aos que morreram na guerra. O objetivo era refletir sobre a quantidade de vidas perdidas devido ao desejo de distrair os cidadãos de problemas governamentais, enviando soldados jovens, cientes de que não haviam condições físicas e armamentistas para enfrentar os ingleses.
A crítica ultrapassa divisões do setor civil e militar e entra na questão humanitária.
Ainda que com discursos e gritos de “viva la pátria” e “Malvinas és nuestro”, os argentinos mostram-se conscientes do terror dos sete anos e, mais uma vez, Marcelo Larraquy afirma: “Não acredito que há a possibilidade de um novo regime militar ou algo parecido. Na Argentina não há espaço para discursos assim.”
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