Sábado também é dia de IX Jornalismo sem Fronteiras. O compromisso diário estava marcado para…
Mil olhares para o coração da crise
Quando falamos de Brasília, há duas imagens que surgem em nossa cabeça: uma é a da organização. A cidade planejada, estruturada e modelada por Juscelino Kubitschek e Oscar Niemeyer até os mínimos detalhes, com cada coisa em seu devido lugar e cada prédio parecendo uma obra de arte. A outra é a do caos da política. Ministros gritando em salões lotados, políticos maquinando em corredores, manifestações e embates diários entre o povo e seus representantes.
Foi para mergulhar de cabeça nesse universo que os participantes do III Jornalismo & Poder embarcaram, dos mais diversos pontos do Brasil, com destino a Brasília. Depois de alguns meses de preparação, a hora finalmente havia chegado, e não podia ser mais propícia. O afastamento e seguida restituição do presidente do Senado, Renan Calheiros, a polêmica proposta de reforma da previdência, confrontos com a polícia. Se tudo isso aconteceu em menos de 24h, imagine então em mais de uma semana? Subimos no avião (nos aviões, na verdade) com a expectativa e o desejo de fazer parte de tudo isso o mais rápido possível. De registrar tudo. De estar no coração, e na alma, dessa tão falada crise que afeta todo o país.
A vista da janela do avião encanta. É o primeiro vislumbre da capital do pais. Mas não estamos aqui para olhar a superfície, mas sim para investigar o que há por baixo dos panos e da calmaria, para absorver tudo dessa cidade, todos os sons, cheiros e tons. Conforme nos diria mais tarde Alan Marques, fotojornalista da Folha, o bom fotógrafo (e jornalista) é aquele que trabalha com todo o ambiente a sua volta para achar o melhor ângulo, a melhor foto.
Mas essa conversa só aconteceria no final da noite. A primeira parada foi o Congresso, onde visitamos a Câmara dos Deputados, o Senado e seus museus, (a primeira surpresa). De um lado do salão negro, o espaço entre a Câmara e o Senado que leva esse nome pela cor de seu piso, está o Museu Memorial do Senado, e nele os seus guias, que de forma aberta, mas contida, nos contam como é ser uma pessoa comum que trabalha em um dos três poderes do Brasil: surpreendentemente comum. O que eles sabem sobre o que acontece por lá é o mesmo que todos sabemos, por ver na televisão. Se acontece de verem ministros conversando nos corredores, a informação não circula entre os demais funcionários, por medo de encrenca. Têm receio até de já estarem falando demais apenas por afirmar essas suspeitas e seu descontentamento com as decisões que saem de lá para nós, coisas que por si só já são informações preciosas.
Do outro lado do salão, uma exposição que não esperávamos, mas que fez a participante Thais Nascimento muito feliz. “Oh, Igualdade! Por que tardas?”, traz fotografias, documentos originais e livros que retratam a busca pelos direitos políticos e sociais femininos. Informações importantes para uma pauta sobre o tema.
Começando a visita, percorremos os corredores do lugar, levados por um guia que nos contava sobre as obras de arte espalhadas no local, sobre sua história e como funcionam as sessões da Câmara. Acabamos até acompanhando um pedaço de um evento que estava acontecendo em um dos salões. Tiramos fotos e acompanhamos o máximo possível, até precisarmos retomar o tour.
Seguimos caminho, com uma integrante a menos. Thais havia descoberto um evento da procuradoria da mulher, o Seminário Mulheres no Poder, que irá debater sobre a igualdade de gênero e as conquistas das mulheres na política na quarta-feira, e conseguiu, com muito esforço, convencer as representantes da procuradoria a deixá-la se inscrever para cobrir o encontro, mesmo com as inscrições já estando encerradas. Nem meio dia de programa e já temos pautas começando a ser encaminhadas!
Nos reencontramos todos na saída do Congresso e partimos para nosso próximo compromisso, agora sim, a conversa com Alan Marques, que há 15 anos realiza as coberturas fotográficas de tudo o que é relacionado à política em Brasília.
Alan nos recebeu no auditório do prédio destinado ao Sindicato dos Jornalistas. Apesar da longa trajetória e dos muitos prêmios, tem os pés no chão e logo nos afirma que fotografia é ao mesmo tempo hobby, arte e comunicação. Com leveza, nos leva por um exercício do olhar fotográfico ao nos mostrar diversas de suas fotos e nos perguntar quais eram as impressões que elas nos passavam. Desespero. Esperança. Ou uma alegoria à situação do país. Para Alan, o mais importante no fotojornalismo é a narrativa que você constrói com a sua foto, a história que ela conta e o que ela representa. É necessário sair da foto óbvia e tirar aquela que mistura a lógica, a emoção e a ética, construindo uma narrativa que seja só sua – pois nenhuma outra pessoa tem o mesmo olhar que o seu – e que tenha valor.
Pode ser algo tão simples quanto ter a ferramenta correta. Durante a posse de Lula, em 2003, Alan conseguiu a foto ao colocar uma escada de frente para o caminho que o futuro presidente iria fazer e se recusar a sair dali mesmo sob os pedidos de seus colegas. A escada, para ele, é um equipamento jornalístico indispensável.
Outras vezes, como dissemos anteriormente, é o caso de perceber todo o ambiente ao seu redor, e ter bons ouvidos. Durante um evento que contava com a presença da presidente Dilma, Alan escutou um assessor comentar e então repassar para ela a informação que haviam parado seu processo de impeachment. Dilma se emocionou, e, por já estar preparado, Alan conseguiu A foto.
Outras vezes, é o caso de pôr uma ideia na cabeça e esperar acontecer. Em uma entrevista, o então presidente Lula, comentou que se Jesus fosse presidente, precisaria negociar com Judas que seria da oposição. Sentindo que essa frase é que iria pegar, Alan então esperou o resto da entrevista até ter a chance de tirar uma foto que remetesse a ela.
Infelizmente, segundo ele, a foto que você tira e gosta não é sempre a que sai no jornal. Ou muitas vezes eles colocam a foto mas a alteram de forma que a narrativa que o fotógrafo tinha a intenção de contar é transformada e perdida. Por isso ele gosta de trabalhar com livros próprios, onde pode escolher o material editorial, qual fotos ele quer e que história ele quer contar.
A política pode ser incansável, por isso, aqueles que a cobrem também precisam ser. Alan já chegou a trabalhar mais de 36h ininterruptas em uma única cobertura e brinca: “Meu dia tem mais que 24h”. Quando se trata dos perigos da profissão, de lidar com manifestações e situações de risco, o conselho também é bem-humorado:
“Jornalista é um bicho idiota, a gente vê todo o mundo correndo para um lado e vai para a direção oposta para tirar uma foto do que está acontecendo. É a profissão. Eu já fui baleado, esfaqueado, levei bomba de gás. Mas devemos sempre nos proteger, estar com o equipamento correto para evitar danos realmente ruins.”
Terminamos o dia, e percebemos que aquilo que imaginávamos antes de chegar aqui não é correto. A cidade parece organizada, mas é impossível se localizar por aqui, se errar o caminho é quase impossível retornar com facilidade pois as ruas não se cruzam, e até mesmo os moradores e motoristas do Uber se perderam diversas vezes ao nos conduzir. Por outro lado, no mundo da política, tivemos um dia tranquilo e descobrimos as pessoas comuns que vivem nesse universo todo o dia sem se abalar. A organização pode ser caótica, tanto quanto o caos pode ser organizado.
Com muitas aprendizagens, muito trabalho e muitas pautas pela frente, iniciamos nosso mergulho no coração da crise. Quem sabe o que teremos que enfrentar pela frente? Muitas surpresas e dificuldades e a única certeza é que estaremos preparados para todas.
Amanhã voltamos para contar quais foram as surpresas do dia. Até mais!
#DICA
Livro: Caçadores de Luz – Histórias do fotojornalismo de Alan Marques, Lula Marques, Sérgio Marques
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