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Cineastas independentes brasileiros se aventuram na “ciudad de la furia”

Vieram para a Argentina fazer cinema e descobriram novas possibilidades. De video-arte à instalação,  cinema passou a significar mais que produzir filmes

BÁRBARA GARCIA

DE BUENOS AIRES

 

Yvens e Pavel se conheceram por conta da reportagem. Foto por: Barbára Garcia
Yvens e Pavel se conheceram por conta da reportagem. Foto por: Barbára Garcia

 

Desde que o filme argentino “El Secreto de sus Ojos” ganhou o Óscar de melhor filme estrangeiro, em 2009, o cinema argentino vem sendo mais comentado. Com o sucesso estrondoso de crítica e bilheteria de “Relatos Salvajes”, em 2014, que também levou a estatueta, o prestígio se intensificou. Mas além desses grandes nomes e produções, com uma pegada hollywoodiana, como será que está o cinema independente? Existem brasileiros se dedicando a aprender cinema com “los hermanos”? Nesses dias em que estive em Buenos Aires, conversei com três cineastas independentes brasileiros que decidiram embarcar nessa aventura, o Yvens Galli, o Pavel Tavares e a Marina Rosa. Além disso, o diretor da faculdade de cinema CIC – Centro de Investigación Cinematográfica, Fabián Sampedri, trouxe mais detalhes da produção cinematográfica argentina e da sua vivência como acadêmico e professor da área.

 

Cidadão porteño com ídolo russo

 

Pavel Luiz Tavares de Carvalho tem 26 anos e mora em Buenos Aires há cinco. Baiano com sotaque argentino já bastante carregado, veio de longe, Juazeiro da Bahia. Já está tão ambientado  na “cidade furiosa” – uma definição que ele incorporou da música “En la ciudad de la furia”, da banda de rock argentina Cerati – que esquece algumas palavras em português e deixa escapar muitos “claro, claro, dale”, igualzinho aos argentinos. Já considera-se mesmo um cidadão porteño. Estudou cinema na Universidade do Recôncavo Baiano (UFRV), mas ficou menos de seis meses. Como todo retirante, decidiu rumar para São Paulo, mas não aguentou três dias. “Sampa é uma música certeira, mesmo”, fazendo referência ao estranhamento poético de Caetano Veloso. Mas ainda traz consigo algo brasileiro que ele mesmo define como “baianidade”. Uma barbicha a la Raul Seixas e um modo cantado de falar.

De São Paulo decidiu então pesquisar algo novo, e “de supetão” veio estudar Imagem e Som na Universidade de Buenos Aires (UBA). Aqui, aprendeu quase tudo que sabe, mas considera que não é preciso ser um acadêmico para produzir cinema. Palavra, aliás, que pensa estar ultrapassada. Para ele o audiovisual permite múltiplas possibilidades, além das salas escuras com telas grandes e os festivais.  Tais possibilidades talvez ainda nem possam ser descritas em palavras, que ele define como “traiçoieras”. O importante é desenvolver a sensibilidade, é “sofrer a experiência humana”.

Suas maiores influências cinematográficas são russas, como Tarkovski, que ele citou mais de quatro vezes como seu ídolo. No ano passado, teve a oportunidade de produzir um documentário experimental na Rússia por um mês, na universidade de cinema da Russia, onde o ídolo também estudou. “Foi uma loucura para conseguir o dinheiro para a passagem e descobrir uma história em uma semana, filmar em outra e editar em três dias”. Tinha algumas aulas, como com um professor que considera seu mentor, Alexandre Gutman, com quem aprendeu muito, inclusive com os desentendimentos. “Eu sou meio teimoso nas minhas ideias”, confessa ao sorrir. Porém, a maior parte da experiência era prática.  A cidade era Kirov, pequena e pouco conhecida.

O video chamado “Alexander” traz a história de um padre da igreja ortodoxa que liderava um grupo de motoqueiros cristãos. Ele considerou o personagem muito interessante também por seu lado trágico: apesar de ser padre, ele poderia se casar, já que esta é uma prática comum na Igreja Ortodoxa. Enfrentou divórcio, foi impedido de ver os filhos e sofreu um ataque cardíaco durante os dias da filmagem. A equipe de Pavel – com apenas quatro pessoas – ficou sabendo de última hora, e estava a 500 quilômetros de distância do hospital. Assim, eles decidiram dar um desfecho mais poético à produção, que ganhou um prêmio de melhor video experimental na Russia. “Como um presente do universo”, ele diz, o documentário acabou trazendo uma referência muito direta a Tarkovski: o último dia de gravação era chuvoso, e sua equipe conseguiu filmar um edifício antigo, quase em ruínas, com um fluxo de água caindo por dentro. Essas imagens de construções antigas com chuva são muito presentes nas obras no cineasta russo. Durante a primeira exibição do filme, em um festival, Pavel escutou uma senhora exclamar a semelhança com Tarkovski e se arrepiou. Esse ano a produção vai participar da Bienal de Arte e Movimento de Buenos Aires. Confira o trailler do documentário aqui.

Outra produção importante de sua carreira é o documentário “Jacyporã”, gravado em uma aldeia da tribo guarani, antes de vir para Buenos Aires. Uma preocupação foi manter contato com a aldeia depois que o vídeo estivesse terminado e por isso levou as crianças da aldeia para assistir ao filme. Muitas delas estavam tendo naquele momento sua primeira experiência cinematográfica. Elas se divertiam, se identificavam, se emocionavam. Pavel diz ter chorado muito ao presenciar o que se tornou uma experiência inesquecível. Ficou curioso? Confira o trailler aqui.

Atualmente está produzindo um documentário na Patagônia, que ele considera o lugar argentino mais parecido com o sertão do nordeste brasileiro. “Com a diferença que lá tem neve no inverno”. O vídeo está em fase de desenvolvimento e é seu primeiro longa metragem, intitulado “Ojo del Mar”. A página do projeto você confere aqui.

 

Do “interiorzão” a B. A, a intuição é a guia

Yvens Galli: “Não quero que nada me defina. Só assim posso ser tudo”. Foto por: Bárbara Garcia
Yvens Galli: “Não quero que nada me defina. Só assim posso ser tudo”. Foto por: Bárbara Garcia

 

Yvens Galli, também tem 26 anos e veio de Lençois Paulista, SP, definido por ele mesmo como “interiorzão”. Cursou Produção Musical em São Paulo, na Universidade Anhembi Morumbi. Em 2009 passou a estudar uma disciplina chamada trilha musical, e, em suas palavras, “Eu pirei. Decidi que era cinema o que queria fazer”. Começou a pesquisar cursos de cinema em Buenos Aires, por já saber que aqui existem muitas escolas conceituadas. Não conseguiu mudar naquele momento e terminou a graduação.

Aí sim veio pra cá de forma definitiva. Procurou a UBA e começou a cursar o ciclo básico, chamado CBC, que é obrigatório para todos os cursos, mas não se adaptou. “Vagabundo que sou, percebi que aquele negócio acadêmico não era pra mim, com aulas de sábado pela manhã e tudo mais”, conta com ar despojado e dando risada. Decidiu seguir apenas o felling. “Outro dia comecei a ler a biografia do Zé do Caixão, um dos maiores atores brasileiros. Alguém disse pra ele que deveria estudar um livro de linguagem cinematográfica. Mas depois de um tempo ele percebeu que não queria ser moldado por nenhuma técnica, nenhuma teoria. Foi a desculpa que arrumei para continuar do jeito que sou. Aprender tudo na prática e só seguir a intuição”.

Foi quando procurou sua amiga Tamae Garateguy, uma professora da Cyevic – escola privada de cinema em Buenos Aires – e se ofereceu para ser “um escravão, um faz tudo”. Ela o chamou para ajudar na produção de um video coreano, que nem Yvens consegue pronunciar exatamente o nome, chamado “50 Chuseok”, gravado aqui em Buenos Aires.

Depois participou de uma co-produção Brasil e Argentina, chamada Vergel. “Essa é legal, vai sair ainda esse ano”, ele conta um pouco animado. “Ainda não tenho coisas autorais, participei das equipes mas ainda não comecei a criar”. Perguntado sobre os projetos que habitam sua mente, Yvens diz que têm muitas coisas em stand by, mas que não pode expô-las porque se não perde a vontade de realizar. “Se eu conto depois penso: porque fazer? Quero contar só depois de pronto. É loucura minha mesmo, nada pessoal”, diz com um sorriso maroto.

Pensa em voltar para o Brasil? “De jeito nenhum. Não quero voltar pra trás, quero conhecer outros horizontes”. Conta que logo que chegou tentava ficar longe do grupo dos brasileiros, para justamente ter contato com pessoas diferentes. Porém os amigos mais próximos eram outros estrangeiros ou pessoas do interior da Argentina. O cidadão porteño é fechado, todos aqueles que não vivem em Buenos Aires se sentem meio deslocados, segundo Yvens e Pavel. Para os dois, se aproximar das pessoas foi um desafio, pelo menos logo que chegaram. A saudade da comida brasileira é comum entre eles. Contam que aqui isso é coisa de restaurantes caros. “Macri está acabando com a minha vida”, diz Yvens, rindo. “As coisas estão caras demais”, completa. Pavel sente saudades do “tempero e do calor. Comer uma moqueca é coisa muito rara, é quase um gozo, tá ligado?”

 

As escolas de cinema de Buenos Aires

Fábian Sampedri: diretor da faculdade de cinema da CIC, diz que sua maior batalha vencida foi ajudar a formar novos cineastas. Foto por: Bárbara Garcia
Fábian Sampedri: diretor da faculdade de cinema da CIC, diz que sua maior batalha vencida foi ajudar a formar novos cineastas. Foto por: Bárbara Garcia

 

O Centro de Investigación Cinematográfica é uma das escolas privadas de cinema mais conceituadas de Buenos Aires. Foto por: Bárbara Garcia
O Centro de Investigación Cinematográfica é uma das escolas privadas de cinema mais conceituadas de Buenos Aires. Foto por: Bárbara Garcia

 

Buenos Aires é famosa por sua tradição artística. Considerada a capital mundial do teatro, também possui muitas escolas de cinema, entre as mais famosas estão as públicas Universidad Nacional Argentina (UNA) e a já citada Universidad de Buenos Aires (UBA), que não possui curso estritamente de cinema, mas sim Imagem e Som. Entre as particulares mais famosas estão a Cine y Artes Visuales (CYEVIC) e o Centro de Investigación Cinematografica (CIC), que tem faculdade de atuação, curadoria/produção cultural,  cinema/televisão. Ao todo tem cerca de 700 estudantes, desses mais ou menos 300 só no curso de cinema. Conversei com Fabian Sampedri, o coordenador da faculdade.

Para ele, os motivos para os brasileiros virem a Buenos Aires estudar cinema é pela qualidade dos professores e pela tradição em teatro da cidade, além do reconhecimento do cinema argentino. Celina Murga, importante cineasta argentina, teve como mentor o renomado Martin Scorsese, segundo o jornal porteño Clarín. Fabián também considera que é economicamente atrativo estudar aqui. Além de aprender cinema, ele pensa ser muito importante que o cineasta conheça outra língua e cultura. “No se hace cine sin conocer comportamiento humano“, ele afirma. Para ele a psicologia é imprencidível para um cineasta. É preciso viver os sentimentos humanos para ter a empatia suficiente e contar uma história que traga algo de interessante para o público.

Com os sofrimentos, todos nós nos identificamos, ele diz. Mas o mais difícil é representar o vazio humano, a solidão. Apesar de ser uma questão muito universal, não é algo facil de se representar graficamente, com recursos sonoros e visuais. A maior parte das produções argentinas têm tido esse propósito nos ultimos anos. Citando Lipovétkzki e Bauman ele afirma: “todos querem mostrar seu vazio, mas nem sempre querem se conectar ao vazio dos outros”, opina o professor de cinema.

Ele conta não conhecer muito bem o cinema brasileiro contemporâneo para traçar comparações, mas afirma que o cinema argentino procura trabalhar muito do ponto de vista autoral. Quase todos os filmes tem uma marca registrada do diretor ou roteirista. Isto pode ser até um problema, do ponto de vista de Fabián, porque temas pessoais demais algumas vezes correm o risco de não cativar o público.

“Toda produção cinematográfica é uma batalha. Um trabalho de muita concentração e estudo. Constrói-se um exército por muito tempo, e em contrapartida tem-se pouquissimo tempo para gravar. É uma única tentativa”. Para ele, a maior satisfação de sua vida é a carreira como professor e acadêmico: “A maior batalha que já ganhei foi montar um plano de ensino em cinema e depois de alguns anos ver jovens cineastas formados por nossa escola”, conta com simpatia e envolvimento.

 

Video-instalação com pegada feminista

Marina Rosa: descobriu alegria ao produzir uma video-instalação sobre empoderamento de mulheres. Foto por: Bárbara Garcia
Marina Rosa: descobriu alegria ao produzir uma video-instalação sobre empoderamento de mulheres. Foto por: Bárbara Garcia
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As paredes da sala são decoradas com releituras de Che Guevara pelo artista da pop art Andy Warhol e figuras de Frida Kahlo. foto por: Bárbara Garcia

 

Toco a campainha do apartamento 14 no fim do corredor. Tudo está escuro. De repente escuto uma voz que pergunta: “Quem é?” Ela me recebe educadamente e me oferece café. As paredes são cheias de réplicas de quadros de Gustav Klint, imagens de Frida Kahlo e uma releitura do rosto de Che Guevara feita com todo o estilo pop art de Andy Warhol.

Marina Rosa Rossi tem 28 anos. Vinda de uma família um tanto conservadora, seus pais ainda perguntam quando é que ela vai conseguir um “emprego de verdade”. As cobranças já não lhe incomodam tanto. Descobriu há pouco tempo que está realizando aquilo que mais a deixa feliz. Apesar de ser formada em Cinema na Unisinos de Porto Alegre, compreende que o audiovisual traz novas possibilidades de produção e entendimento. Hoje cursa mestrado em Artes Eletrônicas na UBA, e pensa em construir sua pesquisa relacionada ao engajamento politico ou a temáticas feministas e LGBTs. O que mais gosta de fazer são video-instalações, sua preferida é Mujer Multidão, que já ganhou alguns prêmios em festivais e em breve fará parte de exposições urbanas por Buenos Aires.

Trata-se de um conjunto de vídeos interativos com corpos de mulheres, com o objetivo de estimular o empoderamento feminino. Ela conta que descobriu-se feminista aos 18 anos, quando decidiu terminar um namoro longo e ouviu de algumas pessoas que “você vai ficar sozinha”. Começou a querer para si mais do que o papel que se esparava de uma mulher, e compreendeu que as questões de gênero precisavam ser repensadas. Hoje participa de um coletivo de militantes brasileiros “unidos contra o golpe ao governo Dilma”. Apesar disso, ela afirma que o grupo faz oposição ao governo, porém reivindicando ideais de esquerda.

Um vídeo que ainda está em fase de produção é um curta-metragem de 15 minutos baseado na história de vida de uma amiga, Mariana. Ela e sua companheira de quarto Dani – que também é brasileira e estuda cinema em Buenos Aires – perceberam que a história de vida da amiga era tão íncrivel que poderia render um roteiro para filme. Decidiram adicionar uma certa dose de fantasia e ficção e convidaram Mariana para fazer papel de si mesma. Os outros dois personagens também “interpretam” a si mesmos. Além das filmagens, o vídeo conta com imagens de arquivo feitas em viagens entre os amigos e outros eventos, ocorridos antes mesmo da ideia para o projeto vir à tona.

Ela conta que passou a gostar de Buenos Aires. “Aprendi tudo na prática. No começo era complicado, me sentia um pouco deslocada, mas depois me acostumei com o ritmo da cidade. Sinto falta daqui se passo algum tempo longe”. Depois que terminar o mestrado, daqui mais ou menos dois anos, pensa em seguir carreira acadêmica e dar aulas em alguma universidade no Brasil. Claro, sem deixar a video arte e as instalações interativas que trazem sua assinatura.

 

 

BÁRBARA GARCIA é jornalista e participou do “Jornalismo sem Fronteiras” que leva jornalistas e estudantes de comunicação a Buenos Aires para um mergulho de 10 dias no trabalho de correspondente internacional.

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