Sábado também é dia de IX Jornalismo sem Fronteiras. O compromisso diário estava marcado para…
O valor da experiência
Muitas vezes acreditamos – e somos até mesmo cobrados para isso – que precisamos saber fazer tudo perfeitamente na primeira tentativa, que se não tivermos uma espécie de “gênio” que nos permita dominar qualquer habilidade magicamente, então que não servimos, ou que não vale a pena nem tentar. Mas a realidade é que ninguém nasce sabendo fazer nada, todas as nossas habilidades são aprendidas ao longo da vida por meio de tentativas, erros, acertos e esforço. Muito esforço.
E, claro, que se pudermos cortar um pouco do caminho ao aprender com aqueles que já passaram por aquilo que estamos tentando alcançar, ninguém vai reclamar. Afinal, é para isso que estamos aqui em Madri.
Em uma das salas de reunião da Federación de Asociaciones de la Prensa de Madri, a FAPE, a quantidade de experiência somada como correspondentes internacionais passava dos 60 anos, brincam os nossos entrevistados e fazem nossos olhos brilhar de animação. São mais de 60 anos de histórias, dicas e experiências com as quais não podemos esperar para aprender e que merecem uma introdução adequada:
Uma “charla” de peso
No lado direito da mesa estava Enrique Peris. Jornalista há mais de 40 anos, trabalhou nos mais diversos veículos, apesar de ter se destacado no rádio e na televisão. Durante 10 anos foi enviado especial da Rádio Nacional da Espanha, cobrindo os mais diversos eventos como a guerra das Malvinas e a guerra civil do Líbano, e em 2000 foi escolhido como correspondente da RTVE em Londres/Reino Unido, onde esteve por 7 anos.
A seu lado estava Vicente Botín, que já em 1971 havia viajado por toda a América Latina como enviado especial dos mais diferentes veículos. Em 1972 foi contratado pela RTVE e passou a viajar para o mundo todo – França, Reino Unido, Turquia, Israel, Líbano, Marrocos, Zimbábue, entre outros – realizando matérias e diversos documentários internacionais, tais como sobre a rebelião no Irã, sobre a guerra no Marrocos e sobre os refugiados na América Latina. Foi correspondente em Buenos Aires durante 5 anos e, depois, correspondente da RTVE em Cuba por 4 anos, de onde escreveu os livros “Los Funerales de Castro”, sobre a decadência do sistema cubano, e “La pulga que cabalgo al tigre”, uma biografia de Raul Castro.
Depois temos os dois Franciscos: Francisco Figueroa e Francisco Audije. Figueroa foi correspondente por 25 anos e cobriu o Brasil tanto na sua época de ditadura quanto depois em sua redemocratização, mas sobre ele vou deixar para falar mais na quarta-feira, quando teremos uma conversa exclusiva com ele. Já Francisco Audije, ou Paco, como prefere ser chamado, foi durante 7 anos correspondente da TVE na França e durante 24 anos enviado especial para diversos países, principalmente cobrindo conflitos internacionais, tais como na Argélia, Albânia, Kosovo, Índia e Irlanda do Norte.
E não podemos esquecer Elsa González, jornalista há 40 anos e presidenta da FAPE desde 2010, que nos recebeu e contou um pouco sobre a história da FAPE e da RTVE, assim como sobre a situação das mulheres jornalistas na Espanha – há muitas, mas poucas em posições de direção ou cargos de chefia – e sobre a dupla crise que o jornalismo enfrenta, que vem tanto da economia quanto das novas tecnologias, que apesar de permitirem novas formas de jornalismo, não trouxeram ainda um modelo de negócio que permite sustentar a prática.
Elsa nos alertou também para fazermos uma auto-crítica da profissão. A ética jornalística nos dias de hoje muitas vezes deixa a desejar e, para ela, a mídia deveria fazer uma auto-regulação do que publica, para manter a ética e a qualidade de informação. “Precisamos estar unidos para garantir a liberdade de informação”, diz Elsa. Não podemos mudar a forma como a mídia funciona, mas podemos levar o conselho para nossos próprios trabalhos ao longo da vida.
Ufa. E isso foi só um pequeno resumo de toda a carreira desses incríveis profissionais. Só com isso já dá para imaginar um pouco o nervosismo e a animação que sentíamos ao conversar com esses jornalistas, que passaram por diversas situações que nós não podemos sequer imaginar.
O ser jornalista quando o jornalismo é proibido
Algo em comum entre todos os nossos entrevistados e que chamou a atenção logo de cara foi que todos tiveram experiência cobrindo países que estavam sob uma ditadura, principalmente na América Latina. Argentina, Brasil, Cuba… Eram todos lugares em que a prática livre do jornalismo não era apenas desencorajada, como condenada e perseguida. A censura era pesada não apenas nos jornais locais, mas também com os correspondentes, pois os governantes não queriam que a verdade sobre seus países fosse revelada ao mundo. Na Argentina, durante a guerra das Malvinas, Enrique e os demais correspondentes eram proibidos quase de sair do hotel, imagine então colocar os pés na Ilha para saber o que realmente se passava por lá. Em Cuba, Vicente nos conta, o clima de terror psicológico era tão pesado que muitos correspondentes não aguentavam.
“Primeiro você precisa de uma licença até para entrar no país e uma vez lá eles te vigiam todo o tempo, suas ligações, sua casa. Entraram em minha casa várias vezes. Você está a todo momento no olho do furacão. Se você escreve algo que eles não gostam, eles te chamam em uma salinha com câmeras e te apontam cada linha o que você não pode escrever, gravando a conversa caso você diga algo contra o país. Qualquer dissidência mais grave e você é expulso.” – Vicente Botín
Eles elencam os tipos de correspondentes que cobrem ditaduras em 3 categorias: os “convencidos”, que muitas vezes por uma posição política realmente acreditam naquilo que se diz no país, os que não acreditam, mas se contentam em repassar aquilo que os governos falam porque é mais simples ou por medo das repercussões, e os que tentam mostrar, mesmo que seja um pouco, da realidade do país.
Para esses, existem algumas técnicas que é possível usar, como escrever suas matérias usando de metáforas e alegorias, ou referências culturais que só seriam entendidas pelas pessoas de seu país, mas não pelos fiscais da ditadura. Como dizem eles “escrever na linguagem que a censura não entende”. Vicente brinca que descobriu que os cubanos não tinham senso de humor, então usava muito humor em suas matérias. Também dizem que escreviam muito sobre o que viam, sobre o que se passava nas ruas, já que as comunicações oficiais diziam justamente o contrário. Outra coisa importante é construir fontes secretas no “outro lado”, entre os dissidentes, mas essa é uma tarefa que demanda muito cuidado e tempo, e necessita de um correspondente que irá ficar anos no país para atingir.
Para eles, essa é a principal diferença entre ser um enviado especial e ser correspondente. O enviado especial está apenas de passagem, não tem tempo e nem recursos para se aprofundar nas histórias, então acaba mostrando o que está apenas na superfície e repassando o que lhe é falado, enquanto os correspondentes têm tempo de conhecer as pessoas, ir tomar café, ir na casa delas.
Mas não são apenas nas ditaduras que os jornalistas precisam ter cuidado. Nosso participante Luiz Fernando Teixeira compartilhou em seu blog um pouco mais do que nos disse Enrique Peris sobre isso:
“Enrique Peris aproveitou o gancho para falar que as democracias não eram tão melhores assim no que diz respeito à liberdade de informação, já que as fontes oficiais vendem sua versão dos fatos como verdadeira e normalmente esta não é contestada. Como exemplo, ele citou o caso da morte do brasileiro Jean Charles de Menezes, em Londres. Inicialmente, os veículos acabaram comprando a versão da polícia de que ele teria fugido de uma abordagem e ignorado ordens de parar. Depois, ele relatou como as autoridades dificultaram a apuração dos verdadeiros fatos.”
Para realizar um bom jornalismo, seja em uma ditadura ou democracia, como correspondente ou local, a dica é sempre desconfiar de tudo e de todos: dos governos, dos empresários, das pessoas, pois todos estão tentando te vender seu lado da história. Como nos disse Enrique: “Não assuma nada que te dizem como verdadeiro ou falso, a não ser que tenha provas. Que a terra é redonda é um fato, temos provas, mas no jornalismo essa distinção é bem mais difícil”. Devemos desconfiar até mesmo dos jornais, e saber ler nas entrelinhas do que é realmente falado e mostrado para chegarmos mais perto da realidade.
“Não se preocupe em contar primeiro, se preocupe em contar bem”
Essa frase nos foi dita por Paco, e resume bem o que os quatro entendem que deve ser o trabalho de um correspondente: alguém que conta boas histórias e que mostra às pessoas do seu país como é a realidade em um lugar que elas desconhecem. “O bom jornalismo precisa de paciência e espaço”, diz ele.
E como nós, jornalistas sem experiência como correspondentes, podemos nos preparar para contar boas histórias quando tivermos essa chance? As dicas são muitas, mas a mais importante é nunca deixar de ser curioso e interessado sobre o país que você está cobrindo, pesquise tudo o que puder sobre o lugar antes de ir para lá e enquanto estiver lá, caminhe pela cidade, veja como é a vida lá, viva a cidade e se aproprie dela, leia os jornais todas as manhãs e saiba o que está acontecendo lá e no mundo, e nunca perca o olhar admirado de um jornalista atrás de uma história.
Outra coisa importante é que é sempre necessário ter em mente o público do país para o qual você está escrevendo. Você precisa contar a história para eles, ir atrás de acontecimentos que sejam surpreendentes para eles e não para você. É difícil achar coisas novas, mas é seu trabalho fazê-lo. Paco também nos alertou que é bom manter isso em mente para que o correspondente não se acostume ao local onde está vivendo e comece a escrever como um morador e não como um jornalista estrangeiro. “Várias vezes quando estava na França, o editor entrava em contato para que eu mudasse uma matéria porque estava escrevendo como um francês, sobre algo que interessaria aos franceses, mas não aos espanhóis”.
Por isso, trazer o contexto dos acontecimentos e não apenas o fato em si nas matérias é muito importante. Eles lamentam que, hoje, o imediatismo e a falta de investimentos no jornalismo estejam tornando essas matérias cada vez mais difíceis e raras e reiteram a necessidade de se ter todas as informações e de checar a veracidade do que se escreve antes de liberar uma matéria. Como nos disseram: “O bom jornalista é aquele que fala sobre tudo o que não sabe sem se enganar”.
O brilho no olhar dos veteranos enquanto compartilham suas histórias contagia e eles mesmos não perdem tempo em dizer que não devemos perder nunca a paixão pela nossa profissão. Apesar das condições difíceis, se tivermos paixão vamos conseguir realizar coisas de que nos orgulharemos, nunca perderemos a curiosidade e poderemos ser bons jornalistas. Apesar de Francisco avisar que muitas vezes precisaremos falar sobre assuntos que não gostamos, ele defende prontamente que “Ser jornalista é a profissão mais bonita do mundo e ser correspondente é a parte mais maravilhosa”.
Por fim, apesar de todas as dicas, eles defendem que não há fórmula mágica para ser um bom jornalista. É como falamos no começo, muita tentativa e erro, muito esforço e a experiência que conseguimos no dia a dia da profissão. Francisco resumiu bem: “É jornalista quem pratica jornalismo”.
Só durante essa conversa, já conseguimos uma experiência e uma aprendizagem enormes, e havia tanto mais para contar que mesmo acabada a conversa, todos se juntaram em volta de nossos entrevistados fazendo perguntas extras, pedindo dicas e querendo saber mais histórias. Durante todo o resto da viagem, vamos continuar assim – e compartilhando um pouco de tudo aqui, é claro.
Amanhã teremos mais experiências para contar. Até mais!
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