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Catadores invisíveis

Há dez anos a editora argentina Eloísa Cartonera faz livros com papelão coletado pelos cartoneros. Mas quem são eles?

Confira na  matéria produzida por nossos correspondentes Julia Barbon e André Silva durante o Programa Jornalismo sem Fronteiras, em Buenos Aires.

 


Há uma década a Argentina passou pelo maior abalo econômico de sua História. A taxa de pobreza subiu de 10% em 1991 para 54% no ano da crise, enquanto o desemprego disparou de 18% para 24% em apenas alguns meses. Em um ato de desespero, o então presidente Fernando De la Rúa decretou o confisco do dinheiro dos argentinos, poupado nos bancos, e determinou sua sentença: renunciou 20 dias depois. O colapso político agravou ainda mais a situação do país, que volteou pelas mãos de cinco presidentes em duas semanas.

Com o fechamento de centenas de indústrias, a própria população foi obrigada a firmar fontes de renda alternativas, o que visivelmente ecoa na cidade até hoje – a quantidade de táxis nas ruas e de pequenos negócios como lojas de flores e farmácias desperta certa atenção, por exemplo. O escritor Washington Cucurto, os artistas plásticos Javier Barilano e Fernanda Laguna, no entanto, foram além do objetivo de contornar a crise. Em 2003, criaram a editora Eloísa Cartonera, que se descreve como “um grupo de pessoas que se uniram para trabalhar de um modo diferente e por um bem comum e para aprender novas coisas através do trabalho”.

Publicando soluções

A cooperativa edita obras de escritores latino-americanos utilizando os papelões coletados por alguns cartoneros – catadores de papel –, que selecionam os materiais adequados e os levam à editora. A pequena oficina se localiza no bairro La Boca, em Buenos Aires, e é totalmente independente do Estado. O trabalho é autogestionado, sem hierarquia, e os textos são escolhidos pelas pessoas que montam os livros. “A ideia inicial era nos ‘autopublicar’ [as obras latino-americanas] e utilizar detritos urbanos, ou seja, o papelão”, como afirma Alejandro, que trabalha na editora há quase cinco anos. Transformando a precariedade em incentivo, a iniciativa também busca difundir a literatura latina e ensinar que não é preciso ser um grande gênio para criar.

A Eloísa Cartonera nasceu no bairro Almagro, mais ao centro da cidade, e se mudou há cinco anos para a região atual. Em 2005 compraram uma máquina de prensa alemã dos anos 70 para confeccionar os livros, o que refinou um pouco o formato das edições. O papelão é adquirido diretamente dos cartoneros por um preço maior do que geralmente lhes seria pago nos postos de coleta. O material é cortado e dobrado, e tem um livreto de papel branco colado no seu interior, formando um volume.

As capas são pintadas à mão, uma a uma, com a criatividade de quem decidiu trabalhar na editora. Assim, cada livro é único. “A Eloísa é uma editora popular e ao mesmo tempo erudita. Ou seja, tem uma origem no povo, pela forma de produção, mas também é lida por editores e críticos e vendida em universidades”, opina Juan Mendoza, escritor argentino e leitor afeito das publicações, em sua primeira visita ao local. Segundo ele, a proposta é muito heterogênea, porque “parece atravessar barreiras e atingir diferentes interesses”.

 

O ambiente é pequeno e acolhedor, com espaço suficiente para acomodar não muito mais que as estantes com as publicações e os quatro trabalhadores, que usam as mesas de oficina para montar e pintar os livros. As caixas de papelão normalmente são compradas de cartoneros conhecidos, que trabalham pela região. Hugo é um deles, tido como o “cartonero oficial” da editora.

Além dele, apenas mais dois ou três catadores, dependendo da demanda, vendem materiais para a confecção das capas. Ele coleta papelão há mais de quinze anos, mas contribui por lá há cinco. A sua parceria com os editores foi firmada quando, no meio do expediente pela região de La Boca, um garoto da vizinhança lhe contou que havia um lugar que comprava a unidade do material reciclável em vez do quilo.

Inserido na rotina da Eloísa Cartonera, Hugo acabou conhecendo sua companheira Mirian, ex-cartonera e atual colaboradora. Ele prefere trabalhar sozinho, pois afirma que ganha mais. Entretanto, se quisesse, poderia vincular-se a uma cooperativa de cartoneros.

 

Catadores organizados

As cooperativas disponibilizam caminhões e uniformes aos catadores de material reciclável, que saem às ruas no início da noite. Elas foram criadas durante os anos da crise e existem em grande profusão, dentro e fora de Buenos Aires: são quinze as englobadas pela Federación de Cartoneros y Recicladores, que é o esforço maior em unificar politicamente e fazer ser reconhecido formalmente o trabalho dessas pessoas. Atualmente, há mais de dois mil trabalhadores recuperando 600 toneladas diárias de material reciclável na cidade de Buenos Aires, segundo estimativas do Movimento dos Trabalhadores Excluídos (MTE), uma organização social independente formada nos padrões de cooperativa e integrada à Federação.

 

Mesmo andando pelos arredores do bairro nababesco da Recoleta no fim da tarde, encontra-se facilmente cartoneros trajando o uniforme fluorescente da MTE e preenchendo seus montanhosos carrinhos. Sergio e Paula, de 35 e 31 anos, desempenham a função há uma década, depois que ficaram desempregados. Trabalhando para o MTE, dizem ter liberdade para vender para quem quiserem o material reciclável separado em suas casas, além de receber um auxílio governamental mensal de mil pesos (o equivalente a 500 reais).

Sergio explica que a rotina cartonera é diária, das 19h às 21h30, atuando numa área de dez quadras, no seu caso. Depois eles se reúnem para separar por tipos o material coletado.

Sua situação é semelhante à do ex-metalúrgico Monzón Isabelino, de 63 anos, que também é cartonero desde 2002, ano em que perdeu seu emprego. Ele não consegue outra ocupação por causa da idade avançada: “Tenho tempo de contribuição para me aposentar, mas pela idade não dá. Tenho que fazer 65 anos para me aposentar”. Enquanto isso, segue coletando lixo diariamente das 17 às 19 horas.

Diferentemente dos anteriores, aos 25 anos, Alejandro trabalha independentemente. De boné e casaco pretos, barba por fazer e sem luvas numa das noites mais frias do ano, ele separava variados tipos de detrito no canteiro central da Avenida 9 de Julio, uma das maiores vias da cidade. É cartonero há três anos, sustentando mulher e filha, e não trabalha com cooperativas por causa da localização periférica delas, preferindo ir e voltar com o material da coleta a pé. “Saio de casa às 15h30, chego às 16h30 na [estação] Constitución e aí começo a caminhar até as nove”, declarou. A distância é de cerca de cinco quilômetros.

Por seguir autônomo, também tem menos garantias. “Não tenho nada de nada. A única coisa que recebo é o auxílio maternidade, mas isso é tudo”, disse. Antes, Alejandro trabalhava no ramo da construção. Devido à instabilidade dos empregos que conseguia, atualmente combina bicos com o ofício de cartonero. Entretanto, o retorno financeiro diário oscila bastante: “um dia pode ser 200 pesos, outro dia 100 e, em outro, 50”. Ele completa a fala fazendo referência ao que sentiu mudar nos três anos de trabalho: “Melhor e pior, melhor e pior… Sempre igual. Tem dias.”

Dez anos depois

 

Mesmo com o país em uma situação econômica ainda delicada, de desvalorização gradual da moeda local e de inflação escalando, a situação dos catadores “registrados” parece ter melhorado em relação a 2002. Sergio considera que a situação “avançou muito” em dez anos: “os carros [de lixo] vêm em um caminhão e as pessoas vêm sentadas em uma van, muito mais cômodo. Anos atrás vínhamos todos juntos, apertados. E agora temos um soldo”. Isabelino, por outro lado, lembra que no início os próprios cartoneros eram obrigados a dividir os custos do caminhão do próprio bolso.

A Argentina ainda não se recuperou totalmente do susto da crise. O surgimento em peso dos cartoneros era algo impensável antes da crise de 2001. Os anos se passaram, muitos deles conseguiram melhorar de vida e o trabalho agora é encarado com uma certa naturalidade. Porém, apesar de terem diminuído em número, sua origem está atrelada a este passado recente, que ainda não se afastou suficientemente.

Nesse contexto, a Eloísa Cartonera mantém-se firme do alto de seus dez anos de existência. A popularidade do projeto é tamanha que desde 2003 ele já influenciou iniciativas semelhantes no Paraguai, Bolívia, Brasil, Uruguai, França, Espanha, Moçambique e até China.

Porém, Juan González, que participa do trabalho há nove anos, aponta que cada uma das novas organizações opera com dinâmica própria, e que a Eloísa Cartonera vem se profissionalizando no decorrer desses dez anos: “Hoje em dia nós temos mais saída, mais venda. Temos que produzir em grande quantidade, pois recebemos pedidos de livrarias, universidades, de todos os lados”. Os dois últimos trabalhos da editora foram a confecção de 800 livros em seis dias para uma feira na província de Buenos Aires e de mil exemplares em uma semana para um pedido da Noruega. Durante a nossa visita à editora eles estavam terminando uma tiragem de 250 exemplares bilíngues de poesia marginal brasileira, encomendados pela Embaixada do Brasil. Eles chegaram até a publicar livros em “portunhol”, como é o caso do “El Astronauta Paraguayo”, de Douglas Diegues.

González calcula que o concurso literário para novos autores, organizado pela editora aproximadamente a cada dois anos desde 2004, recebe cerca de 300 títulos para avaliação, podendo se dar ao luxo de recorrer somente à divulgação boca a boca ou à “publicidade grátis” na imprensa. E que sigam em pauta por mais dez anos – assim como os cartoneros.

 

Por Julia Barbon e André Silva

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