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Por dentro do estádio argentino que abriu suas portas para pessoas em situação de rua.

Saiba como funciona a ação social realizada pelo time de futebol River Plate e a ONG Red Solidaria nas noites mais frias do ano em Buenos Aires.

MALU MÕES

DE BUENOS AIRES

Pessoas em situação de rua recebem roupas, comidas, bebidas quentes e um lugar protegido para passar a noite. Crédito: Malu Mões

Na madrugada do último dia cinco, a temperatura na capital argentina chegou a 2ºC, com sensação térmica de -3ºC. Ventos de 19km/h levavam os pertences de qualquer pessoa na rua e machucavam a pele daqueles que estivessem desagasalhados. Foi a noite mais fria do ano até agora em Buenos Aires. Uma onda polar abala a argentina desde quarta-feira, afetando, principalmente, as 1.146 pessoas que estão em situação de rua na cidade, segundo dados de abril deste ano da Direção-Geral de Estatística e Censos de Buenos Aires. Por esse motivo, o Monumental de Nuñez, estádio do clube de futebol River Plate, abriu suas portas para receber aqueles que passariam a noite desabrigados. 

Foi a primeira vez que uma ação desse caráter aconteceu na Argentina. Alguns estádios no Sul do Brasil, como o do Internacional de Porto Alegre, estão realizando iniciativas similares. Na Argentina, o projeto foi realizada em parceria com a ONG Red Solidaria. Há oito anos, realizam a operação “Frío Cero”, com o objetivo de auxiliar os mais vulneráveis quando o inverno chega ao país. Em Buenos Aires, o grupo distribui roupas para os que estão em situação de rua na Praça de Maio – ponto de concentração de manifestações na cidade. Esse ano eles já arrecadaram 20 toneladas de roupas. Muitas dessas foram distribuídas para os desabrigados que buscaram o estádio do River Plate nas últimas noites. 

 “Temos que fazer que este frio passe o mais leve possível para a população mais vulnerável” – Pablo Gelso, voluntário da ONG Red Solidaria.

“O que está acontecendo aqui é algo histórico, um clube abrir sua casa para abrigar os que estão nas ruas”, conta Martín Giovio, voluntário da Red Solidaria, que coordenou a ação. Afirma que o River Plate é um clube muito comprometido com o social. Um levantamento realizado pela Revista Forbes, em 2018, mostra que o clube é o mais valioso da Argentina, custando 219 milhões de dólares. Giovio conta que, há 20 anos, a Red Solidaria realiza ações em parceria com a entidade.

No primeiro dia, 103 pessoas passaram a noite no local. Para o segundo dia, a Red Solidaria se preparou para acolher 200 pessoas e poder contribuir com roupas e comidas outras 200 – que não teriam capacidade de receber. Das 17h às 3h da manhã, o estádio manteve os que dormiram lá aquecidos. No entanto, cerca de 20 pessoas ficaram para o lado de fora, sem serem atendidos. “É muito dolorido, porque detrás de cada número tem uma pessoa”, comenta Giovio.

Fila das pessoas que esperavam conseguir entrar no estádio. Muitas não foram atendidas. Crédito: Malu Mões

“Havia muitas necessidades materiais, mas também muita necessidade de amor e atenção”, comenta Augustina Nodar, voluntária da Red Solidaria. Ela passou a noite no meio das pilhas de roupas, separando o que seria doado para cada um. A voluntária, que há três anos participa ao menos um vez por semanas de ações da ONG, lamenta não ter conseguido ouvir as histórias das pessoas. Mas afirma que o que mais assusta é o tempo que esses indivíduos permanecem nas ruas: ‘sejam 10 anos ou 10 dias”.

Na entrada do local, havia um amontoado de roupas com uma cerca em volta, em que apenas os voluntários podiam entrar. Do outro lado, os desabrigados podiam se sentar para descansar, tomar bebidas quentes, comer algo, receber assistência médica e até cortar o cabelo.Seguindo um corredor em direção ao interior do estádio, essas pessoas eram encaminhadas para dormir. O lugar estava um pouco caótico, com muitas crianças correndo de um lado para o outro, mães preocupadas e grupos de amigos conversando ou disputando peças de roupas específicas – as mais quentes, principalmente.

As 20 toneladas de roupa são distribuídas em kits, para que possam atender o máximo de pessoas possíveis. Crédito: Malu Mões

Em 2016, Néstor Zapata foi afetado fortemente pela crise, perdeu o trabalho e, por mais que tentasse se manter firme, a um ano começou a dormir nas ruas. Ele se sente mal e impotente nesta situação. Seus olhos brilham quando pensa em conseguir um trabalho fixo. Mas por enquanto, a única coisa fixa em sua vida é passar as noites em estações de trem. Conta que muitas vezes não consegue fechar os olhos, devido ao frio ou ao medo de algum outro desabrigado o roubar ou machucar. Na noite do dia 4/7, conseguiu ao menos descansar em paz dentro do estádio do River Plate.

“Nunca pensei que chegaria a essa situação”, comenta Milton Velardes, que há um ano tem as ruas como sua morada. Apesar de ter se abrigado no estádio de futebol, na maioria das noites dorme no metrô. Conta que os albergues do governo são muito perigosos. Ao entrar no abrigo público, precisam deixar seus pertences – como um colchão que lutaram para conseguir – e há muitos riscos de serem atacados por outros que desejam suas roupas ou sapatos.

“É muito triste ver essa realidade, mas ver é o que te puxa para a ação”, enfatiza Pablo Gelso, voluntário há dois anos da ONG Red Solidaria. “Temos que fazer que este frio passe o mais leve possível para a população mais vulnerável”. Da tarde do dia 4/7 à manhã de 6/7, o estádio se comprometeu em receber as pessoas, mas as ações ainda podem ser prolongadas até a onda polar passar. 

Malu Mões é jornalistas e participa do “Jornalismo sem Fronteiras”, que leva jornalistas e estudantes de comunicação e áreas correlatas a Buenos Aires para um mergulho de 10 dias no trabalho de correspondente internacional.

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