Como entender uma nação que viveu o período ditatorial mais sanguinário da América do Sul,…
‘Irmã’ do crack, droga se dissemina na periferia de cidades da Argentina
Medo e delírio em Buenos Aires.
GABRIEL BOSA
DE BUENOS AIRES
Um sorriso largo se abre com facilidade e ilumina a face levemente morena e arredondada de Lorena. A cada poucas palavras ditas em um espanhol rápido, pausa para um riso leve, como se aquela fosse a deixa para eu rascunhar em meu caderno parte da história que ela me conta. São pouco mais de 10 horas de uma manhã de domingo gelada e chuvosa em Buenos Aires. Estamos sentados em cadeiras de ferro com encostos plásticos dentro de um pequeno salão de paredes brancas e desbotadas na paróquia da igreja Inmaculado Corazón De Maria, em frente a Plaza de La Constitución, próximo à região central da cidade.
A mulher divide a atenção da nossa conversa com um prato plástico à sua frente servido de pequenos pães e um copo quente de café. Beirando os 40 anos, Lorena mantém um ar jovial com parte do seu cabelo escuro preso para trás e sua mochila preta com detalhes em rosa. Vestindo apenas uma calça de moleton cinza, blusa vermelha e jaqueta preta com capuz, a mulher parece bastante confortável, apesar do tempo terrível que castiga a capital portenha.
A história de Lucero Lorena Vanessa, seu nome de batismo, é apenas mais uma em meio às milhares que enchem as villas, como são chamadas as favelas, e zonas de risco da Argentina. A mulher passa as noites em uma cama improvisada às margens de Porto Madero, tradicional endereço dos mais caros restaurantes e bistrôs de Buenos Aires, e sobrevive da venda informal de produtos nas ruas da cidade. Lorena é mãe de cinco filhos, com quem aos poucos está retomando contato. As crianças vivem com a família de sua mãe na província de San Luiz, a 794 quilômetros da capital.
O efeito
A forma descontraída de falar e os inocentes sorrisos que exibe em intervalos de poucos segundos contrastam drasticamente com o teor dos relatos que descreve em minuciosos detalhes. Há três anos Lorena batalha contra o vício em paco, uma droga disseminada entre as camadas mais pobres da Argentina. Assim como o crack, o paco é uma pedra barata, altamente tóxica e com grau extremo de adicção, consumida em cachimbos improvisados com latas e canos.
“Você coloca fogo na pedra e o efeito é imediato. Você surta, fica desesperado, completamente louco. A paranóia é muito grande, você fica olhando para todos os lados, achando que vai aparecer alguém para te roubar, para te apunhalar”, descreve.
O êxtase da tragada se extingue em minutos. A sensação de vazio e depressão que seguem são os impulsionadores para consumir a próxima pedra, uma espiral de euforia e abstinência que pode se estender por horas ou dias.
“A droga é muito mais forte que nós. Ela nos controla, nos faz fazer muitas coisas, roubar, assassinar, sequestrar”, expõe Lorena, afirmando que já chegou à consumir 20 mil pesos em paco, aproximadamente quatro mil reais, em um único dia.
Sem demonstrar se abalar e sempre com uma entonação alegre, a mulher descreve a primeira experiência com o paco, através de um amigo em uma casa abandonada, e todos os clichês subsequentes de quem é dependente de uma droga extrema: o distanciamento do convívio familiar, fugas de casa, a rotina de sobrevivência em meios a outros usuários e traficantes nas villas, e os pequenos delitos cometidos para sustentar o vício.
Tragédia
A escalada no vício eclodiu em 2014. Mesmo grávida do sétimo filho, Lorena manteve a rotina destrutiva de consumo diário de paco e bebidas alcoólicas. O abuso das substâncias causou a perda do filho que carregava no ventre pelas ruas de Buenos Aires. No mesmo dia, um telefonema da casa de sua mãe lhe avisara que um de seus filhos havia morrido eletrocutado enquanto jogava futebol com outras crianças nas ruas de San Luiz.
“Foi um trauma, em um dia perdi dois filhos”, resume em voz grave enquanto me encara fixamente com seus olhos castanhos durante um raro momento de seriedade.
A culpa pela morte dos filhos poderia ter sido o pretexto para que Lorena se deixasse vencer de vez pelo paco. Ao contrário, a mulher encontrou na tragédia toda a força que precisava para sair do seu inferno particular.
“Eu parei no dia seguinte por força própria. Parei para que eu possa voltar a conviver com minha família, para que possa ver meus filhos de novo”.
Reflexo da pior crise econômica argentina
O surgimento do paco nas zonas mais vulneráveis de Buenos Aires é mais um reflexo da grave crise econômica que assolou a Argentina na virada do novo milênio. A disparada vertiginosa da classe pobre do país, alcançando pico de 70% em 2002, criou o cenário ideal para a disseminação da droga barata e de fácil preparação.
Segundo os dados do Observatorio Argentindo de Drogas (OAD), vinculado à Secretaría de Políticas Integrales sobre Drogas de La Nación Argetina (Sedronar), entre 2004 e 2010, houve um aumento no uso de drogas ilícitas por parte da população de 12 a 65 anos. O levantamento apontou o crescimento de 1,9% para 3,5% do uso de maconha e de 0,5% para 1,5% do número dos usuários de cocaína. Ainda não havia dados precisos do consumo de paco, mas os pesquisadores estimam que o país concentre aproximadamente 180 mil usuários da “droga dos pobres”.
Apesar da retomada dos investimentos de capitais, a queda do índice de pobreza para 30% e o recente controle financeiro alcançado nos últimos anos, as sequelas causadas pelas pequenas pedras amareladas ainda é latente nas zonas periféricas do país.
“Nem sempre o crescimento da economia está associado à diminuição da pobreza e do narcotráfico. No anos 1990 houve um crescimento econômico, mas significou o aumento da desigualdade entre ricos e pobres e a explosão do narcotráfico”, explica o doutor em Sociologia pela Universidad de Sán Martín, Daniel Schteingart.
Um outro levantamento feito pelo Observatorio de La Deuda Social Argentina (ODSA) da Universidad Católica Argentina (UCA) em parceria com a fundação Konrad Adenauer Stiftung, divulgado em abril deste ano, mostra que, em 2016, 2,9% dos jovens entrevistados havia usado paco ao menos uma vez na vida. O estudo ainda revela que 3,3% dos que admitiram usar drogas alguma vez consomem paco de maneira intensiva e 3,2% de forma ocasional.
“Querem alguém que lhes dê atenção”
“Eles aparecem todos os dias, pedem comida, água, roupas. Muitos não têm família e vêm apenas para conversar, querem alguém que lhes dê atenção”. Quem fala é Rios Elizabeth, uma das voluntárias da Pastoral Social da igreja Inmaculado Corazón de Maria. O grupo integra uma rede de assistência à população de rua e zonas de risco de Buenos Aires, trabalho replicado em centenas de outros centros religiosos espalhados pela Argentina.
Sem distinguir ou fazer perguntas, os voluntários prestam auxílio para todos que os procuram. Refeições gratuitas, cadastramento em programas sociais, ajuda para reencontrar familiares e o encaminhamento de usuários de drogas para centros de tratamento são algumas das ações realizadas pelas entidades.
“Nós procuramos vagas nas instituições particulares e nas mantidas pelas igrejas. Muitos nos pedem ajuda para sair do vício, mas nem todos conseguem se recuperar. Aqueles que conseguem, nós continuamos dando assistência para evitar as recaídas tirando daquele ambiente que a pessoa estava inserida”, detalha hermano Mário Massim, responsável pela Pastoral Social.
Os voluntários da paróquia testemunharam a chegada do paco às ruas e villas da capital portenha no início dos 2000 e a tragédia social que seguiu com a disseminação da droga entre as classes mais periféricas da população. Habituados em prestar assistência para milhares de adictos em narcóticos, a Pastoral Social precisou se readequar para lidar com a nova demanda.
“Antes era apenas cocaína e maconha, então o paco veio como uma onda. Não há distinção de idade ou de gênero dos usuários, alguns têm 30, 40 anos, mas muitos são mais novos”, lamenta Rios.
La Villa 31
As vielas estreitas e enlamaçadas da Villa 31 formaram um território fértil para a propagação da “droga dos pobres”. Longe da atenção e interesses do Poder Público, o paco se disseminou como praga em meio aos barracos e tendas da mais famosa zona de vulnerabilidade social da Argentina. A comunidade está incrustada em meio à região central de Buenos Aires, fazendo margem com áreas nobres, como Recoleta e Palermo, e poucos minutos a pé da Casa Rosada, sede do governo nacional, Obelisco, Avenida 9 de Júlio, entre outros pontos turísticos da capital.
Da porta de casa, o líder comunitário, César Luciano Sanabria, acompanhou o estrago causado pelas pequenas pedras amarelas. Ele se mudou para a Villa 31 durante a adolescência, no início dos anos a 1980, época que a comunidade já era reconhecida como uma das mais violentas de Buenos Aires.
“O paco é como um câncer difícil de erradicar”, pontua. “Sempre houve (venda e consumo) de maconha e cocaína, mas agora o paco é a principal droga da Villa. É uma droga fácil de produzir e muito barata”, complementa.
César nos recebe em sua casa de tijolos à vista pintados em marrom escuro. Ele divide o espaço com sua mulher e a primeira filha do casal, nascida há um ano. A morada modesta também abriga o pequeno estúdio da Radio FM 88.1 – La Radio de La Villa 31, à qual é proprietário. Com um mate em mãos e sentado em uma poltrona confortável ao canto da sala escura e repleta de quadros, troféus de campeonatos de futebol e objetos de porcelana, o morador apresenta um pouco do contexto da comunidade para quem não está habituado àquela realidade.
“A Villa pode ser perigosa para os habitantes de outras regiões, mas quem mora aqui se sente seguro. Há um código: não se rouba dos moradores”, garante, embasando seu argumento no número de homicídios registrados na comunidade nos últimos anos: segundo o morador, em 2016, foram 40 assassinatos, contra cinco nos primeiros sete meses de 2017. “Os crimes estão relacionados às bandas de narco (facções de traficantes), cada uma formada por pessoas da mesma nacionalidade. A principal causa da violência está na guerra destes grupos pelos pontos de comércio de drogas”, detalha.
A Villa 31 é a mais emblemática comunidade de Buenos Aires. As primeiras famílias invadiram a área, que até hoje está em disputa entre o Governo Federal e Administração Municipal, em 1929, e desde então não pararam de chegar novos moradores. No início dos anos 1990 uma crescente onda imigratória de povos vizinhos, principalmente paraguaios e bolivianos, gerou um novo boom de crescimento, resultando na criação da Villa 31 Bis. Atualmente a comunidade conta com 32 hectares de extensão e aproximadamente 90 mil habitantes, divididas em 12 bairros, seis de cada lado da Villa
Uma rua suja, estreita e repleta de comércio divide as duas partes. Em meio à venda de peixes frescos, filhotes de coelhos vivos, frutas, roupas, aparelhos eletrônicos e praticamente tudo que se possa imaginar, se aglomeram barracos de tijolos uns sobre os outros, alguns alcançado até sete pavimentos. As edificações chamam a atenção por suas cores berrantes, como roxo, vermelho e azul, e pelas velhas escadas em formato de caracol enferrujadas pelo passar dos anos.
“Pouca coisa mudou de lá para cá. A principal diferença está na construção das casas, que antes eram feitas de madeira e compensado, e hoje se utilizam outros tipos de materiais”.
Produção simples, ingredientes acessíveis
A produção do paco é semelhante ao do crack. Os traficantes utilizam as sobras do refinamento de cocaína como matéria-prima, acrescentam bicarbonato de sódio e outros ingredientes, como veneno de rato, e “cozinham” a mistura em cima de uma colher. O processo simples e o uso de produtos de fácil acesso permitem que qualquer barraco ou tenda sirva de laboratório. A droga é comercializada em pequenos invólucros de plástico, a custo de 50 pesos, aproximadamente 10 reais cada.
“É como um doce de leite. Você experimenta e quer de novo, não tem como parar”, descreve Juan Domingo Romero. Jala Jala, como Juan é conhecido na Villa 31, transita com facilidade em meio às ruas e vielas. Além de uma referência entre os moradores, o homem também é responsável pela organização de uma espécie de feira livre realizada nos fins de semana em uma das entradas da comunidade.
Mesmo habituado a forte realidade de uma das zonas mais miseráveis de Buenos Aires, Jala Jala se mostra impressionado diante dos reflexos causados pelo paco na comunidade. “Muitos usuários são ainda crianças, já vi de sete, oito anos fumando paco. Eles fogem de suas casas e vêm para a Villa para fumar a droga”, conta.
“Os usuários ficam como naquele programa…como é mesmo? Ah, o Walkind Dead! Os paqueros (denominação dada aos usuários da droga) são como mortos-vivos andando pelas ruas”.
Especialistas definem diretrizes para prevenção
O terceiro Barómetro del Narcotráfico y las Adicciones: Venta de Drogas y Consumos Problemático, realizado pela UCA em abril deste ano, apontou uma série de propostas para controlar o constante crescimento dos índices de consumo de drogas no país. Segundo o documento, é preciso criar políticas de Estado a longo prazo e que transcendam o debate partidário e eleitoral.
“As agências estatais, as diferentes forças políticas e os atores sociais devem construir um consenso mais amplo, evitando usar a problemática dos vícios em uma arena política-eleitoral”, descreve o documento assinado por 27 especialistas de diversas áreas sociais.
O manifesto ainda frisa a necessidade de levar assistência e debater o assunto junto às camadas mais pobres e excluídas da sociedade argentina, fortalecer o vínculo com as instituições que prestam serviços sociais nas villas e dar atenção especial aos mais jovens, especialmente os de idade entre 15 e 18 anos.
“É fundamental compreender que uma parte importante dos problemas tem como fundo a exclusão social e a precariedade de existência, das quais os vícios e o consumo de drogas são sintomas de um problema muito mais complexo”.
As diretrizes apontadas pelos especialistas não são nenhuma novidade para os moradores da Villa 31. Cansado de ouvir muitas promessas e não enxergar nenhuma mudança, César encara com desconfiança e descrença os novos discursos.
“As políticas do Estado são nulas, há muito tempo pedimos infraestrutura, que o crescimento seja acompanhado de políticas sociais”, expõe.
Com o nascimento da primeira filha, o líder comunitário sonha com uma nova realidade, longe das ruas estreitas e enlamaçadas da Villa 31.
“Eu queria sair do bairro, comprar um terreno em outro lugar. Aqui a situação é muito difícil. Se os pais não forem firmes, acabam perdendo seus filhos para as drogas, a gravidez na adolescência”, lamenta.
GABRIEL BOSA é jornalista e participante do programa Jornalismo Sem Fronteira (Buenos Aires), que leva estudantes de comunicação e de áreas relacionadas para a capital argentina com o objetivo de que possam vivenciar e adquirir experiências de correspondentes internacionais.
Confira aqui a matéria publicada na Folha de S. Paulo.
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