Como entender uma nação que viveu o período ditatorial mais sanguinário da América do Sul,…
Experiencias sin frontera
Buenos Aires é uma cidade de cores. De árvores secas, de céu limpo e de simpatia. Cada pedacinho de todo o plano constitui uma pincelada diferente e a tela é essa terra florida, onde perguntar a distância da Recoleta a San Telmo ou pedir um pão de miga com queso no restaurante da esquina derrete qualquer receio de brasileiro acostumado com descaso, mau atendimento e fingi-que-nem-ouvi.
Confira o texto produzido por nossa correspondente Gabriela Soutello durante o Programa Jornalismo sem Fronteiras, em Buenos Aires.
Os argentinos são solícitos, atenciosos, divertidos. “Trajiste uma rosa mí?”, foi a indagação do caixa quando viu que a Nati segurava uma rosa na junto à media luna na padaria “La Exposición”. “Te acompaño hasta La calle que necesitas”, disse outro, que logo tornou-se guia, absolutamente voluntário, nos 30 minutos de caminhada da estação Lima do metrô até a esquina do nosso Hotel.
Na verdade, o que realmente encanta é um fator pueril e quase simples, não fosse a profundidade – da intenção, da pupila, ou, como dizem alguns, da alma. Argentinos te olham nos olhos. Tango, alfajor ou o melhor dos dulces de leche tornam-se clichês tão baratos quanto um peso quando comparados a uma das mais peculiares características encontradas no país. Na Argentina é comum se alguém olha, sem medo e sem sorrisos regulados, nos olhos das outras pessoas.
É perceptível a todo momento. Depois de aparecer na primeira página do Clarín e compartilhar muita moeda nos ônibus sem catraca, essa forma de olhar foi novamente fisgada. Agora, enquadrada em um outro viés: empolgação. Enquanto observávamos a rotina de uma sexta à tarde na redação do jornal, passamos ao lado da editoria internacional, que interrompeu a reunião de pauta que faziam para dividir conosco aquilo que vibravam em palavras: a paixão pelo que fazem. Ser um jornalista bem sucedido está inerente a fazer uma boa construção de si; ultrapassar o fardo de ser apenas um “jornalista como commodities”, igual a todos os outros, é essencial. Estabelecer uma marca própria, só sua, diria Alejandro Rebossio. Constituir uma formação sólida, composta por olhar curioso, conhecimento de outros idiomas, vasto repertório literário e conhecimento robusto, nos disseram eles. Acreditamos.
Acreditar na profissão é sinônimo de entrega, é esquecer tempo ou timidez. Ainda no Brasil, Clovis Rossi indagou o que cada um de nós almejava ser. Em Buenos Aires, por trás dos cachecóis, gorritos e luvas, as respostas foram relembradas na prática: expostos ao desafio de andar pelas ruas de um país de língua, ruas e meios de transporte diferentes, agarrados às câmeras, aos cadernos e aos mapas de bolso, o medo do desconhecido foi substituído justamente pela vontade de fazer algo diferente. Na exaustão que acompanhava cada fim de dia agitado, André Silva e Júlia Barbon não descansaram até entrevistarem três cartoneros, moradores de rua que coletam papelão. Na noite seguinte, sapato social nos pés – resquícios da visita ao Palácio San Martín – e tripé em mãos, arriscaram ir até o bairro La Boca para entrevistar os trabalhadores da Editora Eloisa Cartonera, mesmo que sem aviso prévio. A surpresa dos editores pôde ser percebida; a vergonha dos dois, não. Persistência e jogo de cintura permitiram que, em meio ao papelão, coletassem entrevistas, vídeos e fotos, acompanhados apenas pelo portunhol arranhado.
Quando Ariel Palacios sentou-se diante de nós no Café La Biela, esquina da Quintana com a Ortiz, relembrou suas próprias experiências e revelou uma facilidade gritante em encontrar caminhos para qualquer pauta. Um olhar incrível, um leque de possíveis fontes e um empolgadíssimo falar, falar, falar e – un poquito más – falar, sobre experiências e dicas. Ariel conseguiu dar vivacidade e contorno às pautas recém formadas. Conselhos como tomem-cuidado-não-saiam-às-ruas-sem-bateria-na-câmera (que o Caio jura ter seguido, esquecendo-se apenas do adaptador 220-110V, o que fez seu vídeo ser gravado pela metade), e telefones de “gente importante”, daquelas que assistimos, admiramos e almejamos ser, despertaram nos estudantes ainda mais possibilidades – de conhecer, de exercer e de misturar espanto e sorrisos enormes – Bruna, Maria e Bia que o digam. A pauta escolhida por elas foi completamente dedicada à personagem Mafalda, e o encanto surgido após lerem o telefone do cartunista Quino foi uma dessas misturas de choque com felicidade. Aquele momento foi só o começo de uma série ininterrupta de Casa-da-Mafalda, Fotos-com-Mafalda, Armazém-do-Manoelito, Museu-do-humor, entrevistas, entrevistas, entrevistas.
Entrar na cultura da Argentina é entrar em um mundo onde Perón e Evita, para grande parte do país, são herois, e os reflexos da longa ditadura permanecem inerentes aos espaços públicos da cidade. As histórias da Casa Rosada, da aparição do bairro Puerto Madero, dos centros clandestinos de detenção e um riquíssimo acervo de conquistas de Eva Perón – em jornais, homenagens e muita história no CGT – Confederación General del Trabajo – nos foram apresentados em um City Tour absolutamente diferente do turístico usual. Conhecer cada pedacinho da cidade ao passo em que ouve a empolgação de (sobre)viventes de uma história de construções e ruínas é entrar em um mundo de vestidos longos, sangue derramado e brilho nos olhos de um povo que almejou e almeja, ainda, justiça e liberdade.
Jornalista tem que ser plural. Tem que ser de mil países, submergindo na cultura de um para falar na cultura de outro. Tem que se virar em mil línguas, tem que ter a simpatia de um argentino e também a de um brasileiro. Tem que saber a forma certa de seduzir a fonte, compartilhar identidades, entender o subjetivo do outro, transformando-o em coletivo. Tem que se preparar antes, durante e depois, tem que estar aberto a fontes surgidas de última hora, imprevistos, acréscimos positivos e decepções. Ser jornalista é ter mérito e ser reconhecido pelo trabalho bem feito e é ter que lidar com expectativas frustradas e desilusões. É ter fome de informação e falar com os protagonistas das histórias. É começar como qualquer outro e impressionar por não ser um qualquer.
Descobrimos que trocar dinheiro com desconhecidos nas ruas turísticas – aquela mesmo, que a doida da Ana fez, e por sorte se deu bem, com uma cotação de dólar valendo 4.7 pesos – pode ser perigoso. A situação econômica da Argentina hoje, apesar de boa, já que vem continuamente crescendo após o fim da crise de 2002, está agravada pela proibição da circulação de dólar no território nacional e, assim, as ofertas de compra da moeda por um preço alto são freqüentes. Descobrimos, também, que aqui também é preciso ser maior de 18 anos para conseguir entrar na balada – a Julia até tentou, mas o jeito foi virar a sexta-feira num barzinho de Palermo. Apesar disso, correr riscos sempre pode ser divertido. Nada como o friozinho na barriga que a Mabi deve ter sentido na hora de ser entrevistada pelos radialistas argentinos em programa ao vivo da Rádio Continental. Estávamos dentro do estúdio acompanhando o programa e fomos chamados para uma entrevista relâmpago. Éramos os estudantes brasileiros de periodismo ouvidos por alguns minutos no carro, na casa ou no escritório de milhares de ouvintes.
Surpresas como essa fazem a frustração por não ter visto o quadro da Tarsila do Amaral no MALBA, museu de arte moderna de Buenos Aires, ser esquecida.
As idas aos estádios de futebol como o Boca e o River renderam ao Caio Prestes e ao André Lima muito mais do que uma matéria de cinco muitíssimo bem diagramadas páginas e dois vídeos narrados com vozes de locutores. A visita ao Rainbow Warrior, navio sustentável elaborado pelo Greenpeace, rendeu a segunda matéria da Julia, enquanto a visita ao Palácio San Martín, Ministério de Relações Exteriores, foi narrada nas palavras da Gi Sacco. A pauta sobre música brasileira em solo argentino, feita pela Mabi, sobreviveu à MusiMundo, sempre fechada, e aos portões mal-assombrados de bibliotecas escondidas. O cinema argentino e suas vertentes mostraram ao Gabriel que sua paixão por filmes ultrapassa, de fato, as fronteiras dos países. Os bares peronistas foram muito bem aproveitados pelo Fábio, e não pela experimentação da cerveja “Evita” – que (in)felizmente não ocorreu – ou pela foto tirada ao lado da estátua do Perón: uma matéria com a opinião de donos e freqüentadores veio acrescida de um guia de bares para quem se interessa por política, principalmente a Argentina. Se jornalismo é cooperação, aqui não faltou nem uma gota: todos os dias havia um que ia com outro e outro que ia com um. Os almoços resultavam em risadas, compartilhamento de histórias malucas e cada dia uma nova observação sobre a cultural local.
Buenos Aires é cidade de portões altos, arquitetura francesa, largas avenidas. É interessante ver que a Pepsi é mais vendida que a Coca-Cola e que é infinitamente mais fácil achar uma sorveteria Freddo nas esquinas do que um quiosque de casquinhas do McDonald’s. As placas de carro têm apenas três letras e três números, a água mineral é mais densa que a brasileira, as ruas estão empesteadas de cocô de cachorro e um dos maiores costumes da região é tomar café à tarde lendo jornal. É comum levar choque ao encostar em qualquer coisa por aqui. O metrô é repletos de pichações e os bancos são almofadados com veludo; algumas linhas têm trens cujas portas devem ser abertas por nós mesmos – em uma das idas em busca de fonte para a pauta sobre carne argentina, só a Giovanna Ferraz conseguiu entram num desses. Joelma e Tábita tiveram que esperar o próximo trem, enquanto a Gi se virava sozinha, com o espanhol que nunca havia estudado. O resultado não podia ser outro: sucesso! Qualquer argentino que paravam nas ruas, nas linhas de metrô ou nos restaurantes que visitaram foi absolutamente prestativo. Mesmo quando estão caminhando a determinados lugares, param para dar a atenção solicitada – pegam o mapa, procuram, ajudam. Nenhuma rejeição de fonte e saldo final da viagem positivo. Mais uma vez, foi provado que competência e vontade ultrapassam língua, espaço e pessoas desconhecidas. Sem dúvida alguma foi uma delícia, enfim, experimentar as histórias da carne argentina – quase tão prazeroso quanto olhar o resultado positivo de algo feito por si próprio.
Mas, é claro, há sempre uma pedra no sapato de quem anda bastante. O cansaço e a dúvida entre dedicar-se à matéria ou aos palestrantes do programa além do fato de os dias parecerem os-mais-rápidos-do-mundo foram os maiores contribuintes à tranquilidade caótica que nossa profissão gentilmente nos oferece. O tempo por aqui correu, os dias foram apertados e, as noites de sono, mal-dormidas. Cafés engolidos, corridas pelas ruas, ônibus perdidos, sono, fontes monossilábicas, desencontros. Mas o gostoso de ver é que, apesar de toda a loucura, concordamos com o que disse o Caio: “sujamos os sapatos” como nunca o fizemos na faculdade. Apesar do frio, como disse a Joelma, fomos acolhidos. A sensação de “dever cumprido” é uma das melhores, e o reconhecimento é coletivo. Ao final, acho que podemos juntar todos os “opens” de pão, de vento, de wi-fi e de jornalismo em três “opens” principais, resumidos: open de aprendizagem, de experiência e de novas amizades. Ninguém aqui conseguiria voltar para São Paulo do mesmo jeito que veio.
Conversando com nosso grupo, Clovis Rossi ressaltou que a sorte tem um papel nada desprezível na profissão. É aquela velha questão, de estar-no-lugar-certo-e-na-hora-certa. Alejandro também experimentou esse “fator sorte” quando foi contratado “graças” à ausência, por motivo de doença, de um dos selecionados, na hora de assumir o cargo. Mas a sorte, sozinha, não é suficiente: a dedicação diária é fundamental. O fazer bem feito nem sempre resulta em sucesso, devido às adversidades, injustiças e incoerências que podemos encontrar durante nossa trajetória – e, afinal, quem foi que falou que a vida é coerente? Mesmo com muita dedicação, Alejandro não escapou de sofrer muitas frustrações e humilhações de um chefe que teve no início de sua carreira – “você escreve com as patas” foi uma das recorrentes frases que era obrigado a ouvir.
Por casualidade – ou destino, ou sorte – o Jornalismo sem Fronteiras surgiu na vida de cada um de nós entre os dias 10 e 17 de julho de 2012. Mergulhamos na oportunidade que tivemos de mostrar toda a nossa dedicação. Sorte, acrescida de empolgação, em meio a um grupo dedicadíssimo e um país completamente receptivo. Estávamos lá: hora e lugar certos.
Por: Gabriela Soutello
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