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“Madrid es negra”: jovens afrodescendentes movimentam espaços culturais de Madri
Chamados de “afroespanhóis”, filhos de imigrantes lutam pela valorização da cultura negra
THAIS NASCIMENTO
DE MADRI
De tênis branco, jaqueta preta do New York Yankees – time de beisebol do Bronx, bairro nova iorquino – e boné, David Bohole conversa e escuta música ao lado de um grupo de amigos. O lugar escolhido para o encontro é o El Templo Afro, a sede de um coletivo de artistas e militantes negros na região de Lavapiés, em Madri.
Aos 18, David faz parte da segunda geração: é nascido na Espanha e filho de nativos da Costa do Marfim. Também chamados de “afroespanhóis” – termo que ainda gera muita controvérsia entre militantes e acadêmicos – esses jovens, apesar de terem nascido ou crescido no país europeu, tem nos países africanos de seus ascendentes a maior referência cultural.
“Eu gosto da música das minhas raízes. De antes. De tudo que guardamos desde a escravidão. Gosto da música que me leva a essa essência porque isso me ajuda a viver aqui. Eu toco alguns instrumentos e minha música é como uma luta contra o sistema racista europeu. Você sabe, a comida europeia é sempre boa, a africana não. A música daqui é sempre boa, a africana não. Porque a nossa roupa tradicional não é adequada?” – questiona Bohole.
O discurso de David se alinha a proposta do El Tempo Afro. O coletivo, criado em 2010, se define como um espaço sócio-político dedicado exclusivamente a comunidade afrodescendente. O objetivo é aproximar a comunidade negra, fortalecer a cultura, promover a formação política dos africanos e afrodescendentes e realizar projetos artísticos e educativos, além de ajudar a resolver problemas como a falta de visibilidade, desemprego e uso de drogas.
É no subsolo do edifício La Tabacalera, cedido pela Secretária do Estado de Cultura para os moradores de Lavapiés, onde fica a sede do El Tempo Afro. Um corredor escuro, cercado de fotografias, grafites e mensagens políticas, leva à sala do coletivo. Naquela terça-feira à tarde, quando a reportagem foi produzida, jovens de Camarões, Cabo Verde, Moçambique e diversos países estavam reunidos na sede. A presença da única mulher do grupo chama a atenção.
A jovem é uma marroquina, de 32 anos, que vive na Espanha desde criança e que viu no Templo um espaço familiar. A moça, que chegou a ingressar em três cursos de graduação – e não concluiu nenhum – disse que as condições para estudar nunca foram favoráveis e isso a levou a abandonar a universidade. Foi nesse período conheceu um grupo percussivo formado por africanos de vários países, se envolveu na militância e pela primeira vez reconheceu-se como africana.
“Foi quando fui introduzida nesse universo que me dei conta. A aceitação dos negros é nula. Há a falsa impressão de que os negros foram integrados, mas não foram. O ambiente é sempre muito hostil e o racismo é latente. Observem: a parte negra da história espanhola foi totalmente apagada. Diferente de outros países, não vemos os negros nem nos postos de trabalho” – disse Tahoune.
A partir da ideia de fortalecimento da cultura negra, os membros do coletivo El Templo Afro – que tem como princípio a autogestão – realizam atividades regularmente. Um dos projetos mais conhecidos é o AfroTabacalera, que todas as quintas-feiras, reúne a comunidade para escutar rap, dub, provar comidas tradicionais e assistir a shows de artistas africanos. Apesar do sucesso, a atividade está suspensa há algum tempo por falta de suporte financeiro e de pessoas para viabilizar a realização do evento.
África continente
A aproximação da população vinda da África é um dos focos do projeto mas há outras questões centrais, como a preservação das particularidades de cada país. Gregório Flores, 32, é um dos que constantemente traz ao grupo a discussão da massificação da cultura africana. Afroindígena nascido no Equador, o técnico em informática acha problemático ter que afirmar-se exclusivamente como afrodescendente quando se sente dividido entre a descendência negra e indígena que possui.
“Eu me sinto mais indígena, mas nós não existimos aqui então me envolvi com a cultura afro e me senti bem porque essa comunidade realmente existe”. Meryem concorda: “Há pessoas de muitos lugares: Camarões, Guiné Bissau, Marrocos, Cabo Verde. Temos que considerar que há diferenças culturais dentro dessa comunidade. Há diferenças linguísticas e religiosas que precisam ser respeitadas. Queremos que a cultura seja usada para aproximar as pessoas e não o contrário”.
Para Louis Badu*, da Guiné Equatorial, nenhuma dessas ações podem efetivamente contribuir para a melhoria da vida da população negra na Europa. “Não adianta, tudo isso é muito pouco para o que precisamos. Eu tenho uma ideia diferente. Penso que deveríamos nos reunir e voltar para África para ajudar a construir um Estado forte. O triste é que não posso nem dizer isso publicamente porque vão me rotular como radical, terrorista” – disse o músico.
A diversidade de opinião entre os participantes chega a causar uma discussão entre os participantes do grupo, mas não chega a ser um problema. Os debates acontecem e a tentativa é encontrar uma saída que privilegie a maioria e que promova a reflexão, o que nem sempre é possível. “Às vezes, as pessoas aparecem aqui, bebem e vão embora. Não participam de nada, mas isso é porque falta consciência. Lutamos para mudar isso” – observou Tahoune.
Um prédio do século XVIII
É no prédio da antiga Fábrica de Tabaco de Madri, na Calle Embajadores, que funciona o centro social La Tabacalera. O edifício do século XVIII, foi desocupado definitivamente em 2000 e ficou fechado durante dez anos. Durante esse período, várias manifestações foram realizadas para que o prédio fosse aberto à população. Em 2010, o Ministério da Educação decidiu ceder parte do edifício para uso social. Foi então criado o Centro Social Autogestionado La Tabacalera de Lavapíes, que é gerido pelos diversos coletivos que utilizam o espaço como o El Templo Afro.
*Louis Badu é um nome fictício usado para preservar a identidade do entrevistado, conforme foi solicitado no momento da entrevista.
Thaís Nascimento é jornalista e participa do “Jornalismo sem Fronteiras”, que leva jornalistas e estudantes de comunicação a Madri para um mergulho de 10 dias no trabalho de correspondente internacional.
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