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“Uma guerra marca como ferro em brasa para o resto da vida”

[:pb]Jornalista do jornal argentino Clarín, Gustavo Sierra, compartilha a sua experiência como correspondente de guerra

LETÍCIA TEIXEIRA E
NATÁLIA ROSSI
DE BUENOS AIRES

Guerra no Iraque

Fotos da Guerra do Iraque. Por David Leeson.

Desta vez, era com a gente. As bombas haviam caído a dois quilômetros, mil metros, trezentos metros. Agora, era sobre nossa cabeça. O ataque me atirou contra a parede do corredor. Comecei a escutar gritos. Tinham nos acertado. Nós os correspondentes de guerra estamos preparados para ver a morte ao nosso redor. A morte deles, das vítimas. Dos outros.

Estamos acostumados a falar das mães e dos filhos alcançados pela explosão. Conhecemos de sobra o que é uma matança de civis. Podemos descreve-las com o horror no estomago, com enorme angústia. Umas horas mais tarde, outra história surge, e logo mais uma e a angústia passa. Um pouco de álcool, uns amigos, alguns dias na capital europeia, o beijo da sua mulher, o abraço de seus filhos, e o espanto adormece. Ou, pelo menos, se dissolve pelo corpo. Entretanto, não estamos preparados para suportar nossa própria morte, a de nossos amigos, de nossos companheiros. A morte de um dos nossos pode ser a antessala de nossa própria morte. Se aconteceu com quem está ao meu lado, por que não vai acontecer comigo?

Então, a morte se aproxima. Está aí. Passeia por nós e nos faz lembrar que ninguém está a salvo de ser pego por ela. Quando nós jornalistas decidimos cobrir uma guerra, sabemos o risco que isso implica. Sabemos que poderíamos voltar em uma bolsa de plástico. Mentimos para nossas mulheres e filhos. Falamos que está tudo bem e não está acontecendo nada. Falamos para não acreditarem em tudo o que leem, escutam ou veem na TV. Dizemos aos nossos editores que temos grandes planos de evacuação, que estamos protegidos por todas as forças no conflito. Mentimos e mentimos. E, no fundo, dentro de cada um de nós, carregamos firme a convicção de que não vai acontecer nada com a gente.

Se realmente pensássemos que poderíamos morrer, não estaríamos lá. Ou estaríamos imobilizados com esse medo que espanta e que cola seus pés no chão. Pude ver amigos tão assustados que se sentavam em uma poltrona e não se moviam durante o dia inteiro, como se as bombas tivessem um seletor particular para não cair neste metro quadrado que escolheram para se refugiar. Os outros, em sua maioria, estamos seguros de que não vai acontecer nada. Nos sentimos como ninjas que se predispõem psicologicamente para vencer. Vamos viver para contá-la.”

Assim começa Gustavo Sierra os relatos de seu livro “Bajo las bombas”, crônicas da invasão do Iraque.
“É preciso ter uma dose de loucura para cobrir uma guerra, mas sem nunca perder a noção do risco que está correndo”.

Na maioria das vezes, a cobertura de guerra se resume a um relato sobre as estatísticas dos mortos em combate, os milhões perdidos por causa das explosões, as armas usadas.

Gustavo Sierra usou outra estratégia. Desnudou com palavras o que não são capazes de mostrar mil imagens. Contou sobre a dor das pessoas, o terror, a desesperança. Descreveu cenas que presenciou e que o marcaram como ferro em brasa para o resto da vida.

“Cheguei em uma casa e alguém me falou que tinham matado uma mulher e sua filha. Havia milhares de jornalistas, aproveitei e fui dar uma volta para ver a casa bombardeada. Ao dar a volta em meio aos escombros, encontrei um homem sentado no chão, totalmente desolado. Sentei ao seu lado. Ele se virou e disse algo em árabe. Começou a chorar e me abraçou. Choramos juntos. Não sei se era o marido ou o pai da menina, mas entendi tudo. Entendia a dor deste homem, que era da minha idade.

Essas são as coisas que te levam a ver que o que está por trás da guerra é o ser humano, não é o ataque, o avião, Bush, Saddam. É uma pessoa igual a você, que está sofrendo. ”

Guerra no Iraque

Fotos da Guerra do Iraque. Por David Leeson.

Mostrar a crueldade da guerra ajuda a aproximar o leitor do lado humano e desmistificar a imagem que Hollywood constrói.“Consegui superar estes momentos e fiz meu trabalho. Mas as cicatrizes e a responsabilidade de contar as histórias ficam”

Gustavo Sierra conta que um dos momentos marcantes de sua cobertura foi quando uma senhora segurou seu braço em meio ao caos e a destruição com os olhos cobertos de lágrimas, que não escorriam. Em um pedido de socorro, implorou para que a acompanhasse até o hospital. Milhares de mulheres grávidas esperando por atendimento, lutando para segurarem seus filhos enquanto o nervosismo por viver aquela situação insistia em fazer com que nascessem antes da hora. Havia poucas enfermeiras para tantas pacientes. Gustavo sabia que não poderia dar uma de herói, porque jornalistas heróis não retornam da guerra. Soltou a mão da senhora e disse que sentia muito. As mães olhavam com desespero. Precisavam manter vivo aquele bebê, era a única esperança que restava.

“Esta, para mim, é a história central da guerra: o que acontece com as pessoas.”

Guerra do Iraque

Fotos da Guerra do Iraque. Por David Leeson.

As marcas da guerra não terminam com o fim do conflito. Pior do que cobrir uma guerra, é voltar para casa. É não conseguir dormir por medo de acordar com a explosão de uma bomba. É não conseguir sorrir, por parecer irônico demais em meio a tanta injustiça e desgraça. É ver sua família viva, saudável e feliz. Você viu coisas demais. Passou por uma violência extrema, sem ter para onde fugir. Sentiu-se de mãos atadas por não conseguir ajudar em nada, apenas registrar. “Na guerra comia o que podia, o que tinha. No Iraque comi enlatados. Ao menos nunca, jamais, passei fome”. E, de repente, está em sua casa. Na vida que sempre viveu. E, então, percebe que é impossível fingir que nada aconteceu.

la-guierra-gustavo-sierra

 

LETÍCIA TEIXEIRA e NATÁLIA ROSSI são jornalistas e participam do “Jornalismo sem Fronteiras”, uma iniciativa da Link Consultoria que leva jornalistas e estudantes de comunicação a Buenos Aires para um mergulho de nove dias no trabalho de correspondente internacional.[:es]Jornalista do jornal argentino Clarín, Gustavo Sierra, compartilha a sua experiência como correspondente de guerra

LETÍCIA TEIXEIRA E
NATÁLIA ROSSI
DE BUENOS AIRES

 

Guerra no Iraque

Fotos da Guerra do Iraque. Por David Leeson.

 

Desta vez, era com a gente. As bombas haviam caído a dois quilômetros, mil metros, trezentos metros. Agora, era sobre nossa cabeça. O ataque me atirou contra a parede do corredor. Comecei a escutar gritos. Tinham nos acertado. Nós os correspondentes de guerra estamos preparados para ver a morte ao nosso redor. A morte deles, das vítimas. Dos outros.

Estamos acostumados a falar das mães e dos filhos alcançados pela explosão. Conhecemos de sobra o que é uma matança de civis. Podemos descreve-las com o horror no estomago, com enorme angústia. Umas horas mais tarde, outra história surge, e logo mais uma e a angústia passa. Um pouco de álcool, uns amigos, alguns dias na capital europeia, o beijo da sua mulher, o abraço de seus filhos, e o espanto adormece. Ou, pelo menos, se dissolve pelo corpo. Entretanto, não estamos preparados para suportar nossa própria morte, a de nossos amigos, de nossos companheiros. A morte de um dos nossos pode ser a antessala de nossa própria morte. Se aconteceu com quem está ao meu lado, por que não vai acontecer comigo?

Então, a morte se aproxima. Está aí. Passeia por nós e nos faz lembrar que ninguém está a salvo de ser pego por ela. Quando nós jornalistas decidimos cobrir uma guerra, sabemos o risco que isso implica. Sabemos que poderíamos voltar em uma bolsa de plástico. Mentimos para nossas mulheres e filhos. Falamos que está tudo bem e não está acontecendo nada. Falamos para não acreditarem em tudo o que leem, escutam ou veem na TV. Dizemos aos nossos editores que temos grandes planos de evacuação, que estamos protegidos por todas as forças no conflito. Mentimos e mentimos. E, no fundo, dentro de cada um de nós, carregamos firme a convicção de que não vai acontecer nada com a gente.

Se realmente pensássemos que poderíamos morrer, não estaríamos lá. Ou estaríamos imobilizados com esse medo que espanta e que cola seus pés no chão. Pude ver amigos tão assustados que se sentavam em uma poltrona e não se moviam durante o dia inteiro, como se as bombas tivessem um seletor particular para não cair neste metro quadrado que escolheram para se refugiar. Os outros, em sua maioria, estamos seguros de que não vai acontecer nada. Nos sentimos como ninjas que se predispõem psicologicamente para vencer. Vamos viver para contá-la.”

Assim começa Gustavo Sierra os relatos de seu livro “Bajo las bombas”, crônicas da invasão do Iraque.
“É preciso ter uma dose de loucura para cobrir uma guerra, mas sem nunca perder a noção do risco que está correndo”.

Na maioria das vezes, a cobertura de guerra se resume a um relato sobre as estatísticas dos mortos em combate, os milhões perdidos por causa das explosões, as armas usadas.

Gustavo Sierra usou outra estratégia. Desnudou com palavras o que não são capazes de mostrar mil imagens. Contou sobre a dor das pessoas, o terror, a desesperança. Descreveu cenas que presenciou e que o marcaram como ferro em brasa para o resto da vida.

“Cheguei em uma casa e alguém me falou que tinham matado uma mulher e sua filha. Havia milhares de jornalistas, aproveitei e fui dar uma volta para ver a casa bombardeada. Ao dar a volta em meio aos escombros, encontrei um homem sentado no chão, totalmente desolado. Sentei ao seu lado. Ele se virou e disse algo em árabe. Começou a chorar e me abraçou. Choramos juntos. Não sei se era o marido ou o pai da menina, mas entendi tudo. Entendia a dor deste homem, que era da minha idade.

Essas são as coisas que te levam a ver que o que está por trás da guerra é o ser humano, não é o ataque, o avião, Bush, Saddam. É uma pessoa igual a você, que está sofrendo. ”

Guerra no Iraque

Fotos da Guerra do Iraque. Por David Leeson.

 

Mostrar a crueldade da guerra ajuda a aproximar o leitor do lado humano e desmistificar a imagem que Hollywood constrói.“Consegui superar estes momentos e fiz meu trabalho. Mas as cicatrizes e a responsabilidade de contar as histórias ficam”

Gustavo Sierra conta que um dos momentos marcantes de sua cobertura foi quando uma senhora segurou seu braço em meio ao caos e a destruição com os olhos cobertos de lágrimas, que não escorriam. Em um pedido de socorro, implorou para que a acompanhasse até o hospital. Milhares de mulheres grávidas esperando por atendimento, lutando para segurarem seus filhos enquanto o nervosismo por viver aquela situação insistia em fazer com que nascessem antes da hora. Havia poucas enfermeiras para tantas pacientes. Gustavo sabia que não poderia dar uma de herói, porque jornalistas heróis não retornam da guerra. Soltou a mão da senhora e disse que sentia muito. As mães olhavam com desespero. Precisavam manter vivo aquele bebê, era a única esperança que restava.

“Esta, para mim, é a história central da guerra: o que acontece com as pessoas.”

Guerra do Iraque

Fotos da Guerra do Iraque. Por David Leeson.

 

As marcas da guerra não terminam com o fim do conflito. Pior do que cobrir uma guerra, é voltar para casa. É não conseguir dormir por medo de acordar com a explosão de uma bomba. É não conseguir sorrir, por parecer irônico demais em meio a tanta injustiça e desgraça. É ver sua família viva, saudável e feliz. Você viu coisas demais. Passou por uma violência extrema, sem ter para onde fugir. Sentiu-se de mãos atadas por não conseguir ajudar em nada, apenas registrar. “Na guerra comia o que podia, o que tinha. No Iraque comi enlatados. Ao menos nunca, jamais, passei fome”. E, de repente, está em sua casa. Na vida que sempre viveu. E, então, percebe que é impossível fingir que nada aconteceu.

Gustavo Sierra - Perfil

Clique no infográfico para acessar os links das matérias produzidas por Gustavo Sierra e clique na imagem abaixo para acessar seu webdocumentário “A guerra depois da guerra”.

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LETÍCIA TEIXEIRA e NATÁLIA ROSSI são jornalistas e participam do “Jornalismo sem Fronteiras”, uma iniciativa da Link Consultoria que leva jornalistas e estudantes de comunicação a Buenos Aires para um mergulho de nove dias no trabalho de correspondente internacional.[:]

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