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De Viejo Gasómetro para El Papa Francisco
Torcedores do San Lorenzo compram metro quadrado para possibilitar a construção de novo estádio no bairro de Boedo
ANA ARDITO
MATHEUS CASTRO
DE BUENOS AIRES
O futebol de hoje é muito criticado pela supervalorização do dinheiro em detrimento da paixão. Diversos atletas e diretores se preocupam apenas com o lucro e se esquecem do amor à história do clube. Entretanto, existe um caso na cidade de Buenos Aires, capital da Argentina, que quebra essa regra. Os sócios do Clube Atlético San Lorenzo de Almagro (CASLA) estão com um projeto para reapropriar o terreno de seu antigo estádio e voltar a mandar os jogos no seu bairro de origem, o Boedo.
A ideia surgiu, inacreditavelmente (considerando o mau momento em que passa o esporte), sem nenhuma motivação financeira, apenas com o intuito de retornar a suas raízes. Para isso, o clube convocou seus torcedores para comprarem metros quadrados e ajudarem no sonho de reconstruir seu estádio na área original. A perda do Viejo Gasómetro, antigo campo do time, foi um golpe muito sentido pelos “hinchas” (torcedores) do San Lorenzo que sempre tiveram orgulho de sua casa. Mesmo contrariados, perderam seu templo de futebol para o interesse dos militares da ditadura, mas prometeram que um dia iriam voltar. Em 1993, o estádio Pedro Bigain foi construído em outro bairro e batizado de Nuevo Gasómetro. Entretanto, os torcedores não se sentiam em casa e sonhavam com o retorno a Boedo. Agora, esse momento parece mais perto do que nunca.
Tudo começou em abril de 2003, durante o programa “San Lorenzo ontem, hoje e sempre” na rádio AM 740, quando a proposta de retornar ao bairro foi tomando força e, pouco a pouco, os torcedores foram se organizando para colocar o sonho – que parecia utópico – em prática. O problema é que um hipermercado foi construído logo após a demolição do Viejo Gasómetro. Foi aí que em 2010 ocorreu um protesto para a rede francesa liberar o terreno. Mais de 40.000 cuervos explicitaram a paixão pelo time ao tomarem as ruas em direção à casa de leis de Buenos Aires.
“Todos que estavam lá não paravam de chorar, haviam crianças que pareciam desfrutar o que seus pais e avôs viveram e que necessitavam voltar ao seu lugar para recuperar o nosso patrimônio” afirma Adolfo Res, autor do livro “Avenida La Plata Nos Espera” e membro da Subcomissão dos Torcedores do San Lorenzo desde 2005. Após o êxito da manifestação, o CASLA, pela Lei 4384, estabeleceu a legalização da compra e um fundo de investimentos para realizá-la. Assim, nasceu o projeto em que os torcedores compram um metro quadrado para colaborar com a realização do sonho de voltar à Avenida La Plata 1700.
A construção será iniciada logo após o alcance da quantia necessária para a compra de 35.667 m2, a área total do terreno. O novo estádio será batizado de Papa Francisco, em homenagem ao torcedor mais conhecido do San Lorenzo.
O pontífice costumava celebrar missas nas igrejas mais populares do bairro. Não há um torcedor que seja contra a ideia de homenageá-lo. Após o mundo descobrir que ele é um “hincha” do clube de Boedo, a popularidade do time aumentou e alcançou todos os continentes. O número de sócios passou de 15 mil para 60 mil em apenas um ano após a revelação do time do Papa. Em alguns jogos, como na Copa Libertadores de 2014, muitos torcedores estavam carregando adereços que remetiam a ele, que se tornou um ícone do clube.
Na saída do metrô da estação La Plata, os arredores começam a ser preenchidos pelas cores roxo e grená. Na avenida de mesmo nome, uma oficina tem em todas sua paredes frases que incentivam a volta dos jogos a Boedo. Um senhor atravessa a via para chegar a sua residência. Miguel Mastroverti, hincha do San Lorenzo desde que nasceu, vive a uma quadra do antigo estádio há 56 anos. Mesmo com a longa idade, não falha ao relatar histórias de memoráveis esquadrões da sua equipe. Colombo, Zubieta e Grecco fizeram do ano de 1946 o primeiro campeonato inesquecível do simpático argentino. Nessa época, ele começou a colecionar diversos artefatos do seu clube de coração: artigos de jornais, autógrafos, revistas com a fotografia do Papa Francisco e uma meia de Ortigoza, sua aquisição mais recente.
Ele mora com sua esposa, Beatriz, e possui um quintal, cujos muros ao redor foram construídos com os ladrilhos do antigo estádio. Miguel afirma que o momento da demolição foi um dos mais tristes de sua vida, porque seu cotidiano estava sempre relacionado com a casa de seu time.
Lembranças do Viejo Gasómetro
Para ele, é uma questão de identidade do San Lorenzo jogar em Boedo e por isso valoriza sua volta. Em relação aos metros quadrados, o senhor de 89 anos não pôde comprar, mas garantiu que seus 6 filhos garantiram cada um o seu.
Os hinchas de San Lorenzo valorizam a união de todos para o bem da equipe. Na sede do clube, ao lado do hipermercado, os sócios se cumprimentam e o porteiro consegue apontar aqueles que investiram no sonho do retorno. O sentimento de paixão à história da equipe exala por toda avenida La Plata. Anita Martinez estava na loja oficial comprando o mascote do time para seu neto mais novo. Viúva, teve a influência do marido e, principalmente, do bairro para tornar-se torcedora. Comprou não só para si um metro quadrado, como também presenteou outro neto: “O aniversário dele estava chegando, e essa foi a forma de presentear a maioridade de uma pessoa que amo muito. E deu mais do que certo!” afirma.
Ela se empolgava com a ideia de ter seu nome imortalizado no Estádio Él Papa Francisco e ressalta a admiração que sente pelo cardeal afirmando ser a pessoa mais humilde que já conheceu – uma vez que comungava na Catedral onde ele era bispo.
Em frente, onde era o El Viejo Gasómetro, encontra-se o bar centenário chamado “San Lorenzo”. Camisas, bolas, jornais, bandeiras, fotos de personagens ilustres que visitaram-no, como o Papa Francisco e o ator Viggo Mortensen; sobretudo, o comunicado de como adquirir os metros quadrados, acompanhado da frase “Não vamos parar até voltar a Boedo”. Há catorze anos o estabelecimento pertence ao fanático torcedor Eduardo Fascione e reúne fãs em dias de jogos. Ademais, o dono não hesita em assumir: “Se algum dos meus filhos não fossem Cuervos, não estariam morando mais na mesma casa que eu. É uma paixão herdada há mais de quatro gerações, e isso seria inadmissível!” brinca o proprietário, apontando para o filho que trabalha no balcão. Toda a família se orgulha em dizer que ajudou na construção do sonho de retorno às raízes do clube.
Há previsões de que as obras serão iniciadas em breve e alguns diretores mais otimistas estimam sua conclusão para 2018, uma vez que o projeto está pronto. Então restam apenas que os últimos metros do sonho de milhares Cuervos sejam comprados para que a volta se torne realidade. Aliás, não há dúvida que Boedo é o lar do San Lorenzo e seus torcedores.
ANA ARDITO e MATHEUS CASTRO são jornalistas e participam do “Jornalismo sem Fronteiras”, uma iniciativa da Link Consultoria que leva jornalistas e estudantes de comunicação a Buenos Aires para um mergulho de 9 dias no trabalho de correspondente internacional.
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