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Entrando no caldeirão
Club Atlético Boca Juniors expõe sua mística através do “Museo de La Pasión Boquense” e visita guiada pelas instalações de La Bombonera, atraindo cerca de 400 visitantes por dia, 70% deles provenientes do Brasil.
Confira a matéria produzida por nossos correspondentes André Lima e Caio Prestes durante o Programa Jornalismo sem Fronteiras, em Buenos Aires.
Sábado, 1° de abril de 1905, Praça Solís, bairro de La Boca. Santiago Sana, Esteban Baglietto, Alfredo Scarpatti e os irmãos Juan e Teodoro Farenga conversavam sobre a criação de um clube de futebol. No dia seguinte os cinco amigos, descendentes de italianos, se reuniram novamente, agora na casa de Baglietto, enquanto sua mãe tomava chá com amigas. A discussão foi ficando demasiada acalorada, até que a monarca pediu gentilmente para que os rapazes se retirassem transferindo à reunião novamente para a Praça Solís.
Lá chegaram ao acordo que Boca seria um bom nome, representando o bairro onde viviam e o complemento seria Juniors, um toque inglês muito comum na época. E finalmente na segunda-feira, dia 3 de abril, os companheiros da Escola Superior de Comércio, fundaram oficialmente o clube que, anos mais tarde, chegaria a ter a maior torcida da Argentina.
Além de possuir o maior número de fãs – são intitulados como “La Mitad mas uno”, ou seja, mais da metade dos torcedores do país – eles ainda podem se orgulhar dos inúmeros títulos conquistados no âmbito nacional e internacional de sua cria, como por exemplo, seus 30 campeonatos argentinos, as suas 6 Libertadores da América e os seus 3 Mundiais Interclubes. Além de esbanjar craques do calibre de Diego Armando Maradona, Gabriel Batistuta, Claudio Caniggia, ou mesmo os brasileiros Domingos da Guia e Heleno de Freitas que vestiram essa camisa.
Atualmente o patrimônio boquense se resume muito mais a sua história e tradição do que da própria qualidade de seu material humano, como pudemos acompanhar no recente vice-campeonato continental de um selecionado muito aquém daquele que os xeneizes merecem. Com pouco dinheiro para bancar altos salários, muito graças a atual crise argentina – o real vale aproximadamente dois pesos – e também por incompetência de seus administradores, os azul-dourados não conseguem manter seus astros ou investir em renomados atletas. Porém uma fonte de renda bem tangível é visivelmente observada na Rua Brandsen, número 805 do tradicional bairro em que se localizada a “boca” do Rio Riachuelo.
O Estádio Alberto J. Armando, mais conhecido como La Bombonera, atraí cerca de 400 visitantes diariamente, cobrando 55,00 pesos por pessoa para a visitação do Museo de La Pasión Boquense, um tour que passa pelos vestiários, pelas arquibancadas e até dá a permissão para dar alguns passos em la cancha e tirar uma foto com uma réplica da taça de campeão da Libertadores. O acesso não é dos mais fáceis, pois com transporte publico é necessário utilizar o Subte (metro) e um ônibus que atravessa o pobre bairro de La Boca, onde recebemos vários avisos alertando-nos a ficar “de ojo” bem aberto contra roubos e furtos. A estação mais próxima do estádio é a Constitución, terminal de ônibus e trens da linha C – azul de Buenos Aires. Em seguida, é necessário pegar o bus (que só aceita moedas) de número 53, que em cerca de meia hora deixa os turistas as margens do Rio Riachuelo. E tão importante quanto a infraestrutura ou a mística do imponente edifício é a sua localização, pois está encravado no histórico bairro de La Boca, colado ao polo turístico do Caminito.
O bairro foi colonizado por imigrantes, pois se localiza em zona portuária, com destaque principalmente para descendentes de italianos genoveses. Um dos próprios apelidos dos torcedores do Boca é xeneizes, que significa justamente genoveses em genovês. Porém a principal atração do local não é o campo e sim o próprio Caminito, um dos lugares mais visitados de Buenos Aires, construído com restos de navios atracados no porto e pintado com sobras de tintas dos mesmos. Com o crescimento da visitação de pessoas do mundo todo, as ruas foram perdendo a sua particularidade e se transformaram no estereotipo turístico do país, com casais dançando tango pelas ruas, muitos brasileiros e restaurantes vendendo bife de chorizo.
Mas, mesmo assim, descaracterizada, a região é uma grande parceira da Bombonera, como nos contou o comerciante Christian Rodríguez, dono de uma loja de artigos esportivos., O turismo da região impulsiona a visitação também no estádio, “os turistas ajudam muito, há vinte anos isso aqui não era nada. Principalmente os muitos brasileiros que vem nas férias, almoçam aqui com a família e podem passear depois no estádio”.
Já Eva Lima, além de torcedora fanática do Boca Juniors, é vendedora há 15 anos de miniaturas de fachadas típicas do Caminito e nos contou um pouco sobre sua paixão: “torcer para o Boca sempre foi assim, a dez, vinte, cem anos… é intenso, você sente uma energia incrível. Vivemos e podemos matar pelo futebol. Em dia de jogos o bairro ferve, não é nada comparado àquilo que as pessoas podem acompanhar pela televisão”.
Andando os poucos quarteirões – são cerca de cinco – que separam as coloridas casinhas turísticas do gramado mais vitorioso de Buenos Aires, é possível perceber que o fanatismo pelo futebol só aumenta. Vão surgindo dezenas de casas e lojas caracterizadas com bandeiras, camisas, bolas, chaveiros e até estátuas dos grandes ídolos bosteros. Porém algo que nos chamou muito a atenção – não só nas imediações do museu, mas em toda a cidade – foi a pouca oferta de produtos oficiais, ou pela mentalidade dos visitantes ou talvez pela falta de capital do país, é quase impossível adquirir uma camisa ou qualquer souvenir licenciado pelo clube fora de sua loja oficial.
Finalmente chegando ao campo o que espanta é o seu tamanho. Nem um pouco grandioso como se imagina. De perto a construção é muito mais simples e menor do que temos a impressão ao assistir as transmissões dos jogos pela televisão, com uma arquitetura em forma de retângulo e gramado com as medidas mínimas exigidas pela FIFA (105 metros por 68 metros). A arma secreta que possibilita um estádio de dimensão pequena parecer um gigante, possuir capacidade para 49 mil espectadores e ainda conseguir ter os torcedores bem perto dos jogadores, transformando o local em um alçapão de grandes proporções, é o ângulo das arquibancadas; os aficionados boquenses ficam a quase 90° do gramado. Com estruturas construídas de forma bem elevada, mas ao mesmo tempo próxima dos jogadores, se tem a impressão de que é possível toca-los e simultaneamente ter uma vista de jogo elevada.
Chegando à entrada do estádio, podemos observar a loja do Boca Juniors e o seu museu. Para ver os produtos – camisas, DVDs com sua história, canecas, chaveiros ou tirar uma foto com um Maradona de bronze de três metros de altura – à entrada é franca. Para apenas visitar o passado do clube são cobrados 50,00 pesos e para poder ver suas taças, assistir filmes, acompanhar a trajetória do clube, de seus grandes jogadores e ser acompanhado por um guia para uma visita pelo estádio de aproximadamente 60 minutos, são 55,00 pesos, o que representa 100,00 e 110,00 reais, respectivamente. O tour pelas arquibancadas, vestiários e zona mista funciona todos os dias – em dias de jogos oficiais na Bombonera – das 10:00 às 17:30.
Valendo muito mais a pena adquirir o pacote da visitação completa (cerca de 2,50 reais a mais que o simples), entramos e nos deparamos logo de cara com um mural que inclui fotos de todos os jogadores que atuaram em jogos oficiais com a camisa do multicampeão. Começando nos primeiros anos de fundação e indo até meados dos anos 2000, incluindo desde mitos a atletas que atuaram apenas em um jogo. Em frente a essas imagens, existe um quadro com o nome de todos os sócios-torcedores do clube, cada um sendo representado por uma estrela e mais a frente outros dois monumentos, desta vez de ídolos recentes, Román Riquelme e Martín Palermo são os homenageados da vez.
Ainda no primeiro andar são projetados curtas-metragens de quinze a vinte minutos de duração, sobre a história do Club Atlético Boca Juniors e de seus principais jogadores, além de uma completíssima linha do tempo, incluindo todas as conquistas, com os nomes dos vencedores, resultados das partidas, números de gols marcados por cada um e objetos da época, como a flamula do Borussia Mönchengladbach, time batido pelos xeneizes em 1977, em sua primeira conquista mundial. Também não poderia faltar, há uma sala que homenageia os representantes do atual elenco, com pôsteres, dados e raros artigos de seus principais destaques, como chuteiras ou camisas usadas.
Ao lado das escadas que rumam ao segundo andar está exposta uma maquete do bairro de La Boca, uma miniatura que possui música de fundo, iluminação simbolizando as luzes das pequenas casas de madeira e ao lado um quadro contando toda a história da ocupação da região. Ao final da escada temos um salão dedicado principalmente à exposição vídeos das conquistas continentais e internacionais mais recentes, como as Libertadores de 2000, 2001, 2003 e 2007 e dos Mundiais de 2000 e 2003, incluindo fotos dos principais craques derrotados nas conquistas, como Kaká, Clarence Seedorf, Raúl González, Roberto Carlos e Iker Casillas. Neste mesmo recinto, um televisor tem a seguinte inscrição: ” Samba? No, tango”, reproduzindo repetitivamente imagens de todas as vezes que os bosteros eliminaram times brasileiros em fases de mata-mata da Libertadores da América.
No terceiro e último andar está localizado o restaurante dos azul-dourados, no qual as mesas se misturam com camisas enquadradas e um cardápio todo especial. A sugestão é se deliciar (ao lado de uniformes de grandes campeões como Martín Palermo ou Óscar Córdoba) com a curiosa pizza Riquelme – mesmo sendo a mais cara do menu – vale a pena experimentar, “a mais vendida. Ela é de mozzarella, presunto, com tomates, pedaços de pimentão, azeitonas e palmito”, conta Suzanne Camacho, garçonete boquense.
E é nesse local no qual o passeio pelo estádio Alberto J. Armando começa, guiados por Nórman Zapata, guia há quase quatro anos, temos a oportunidade de andar pelas arquibancadas, numeradas, vestiários, zona mista e pisar no gramado com a réplica do troféu de campeão da América. O destaque fica por conta do local onde a La Doce – torcida organizada da La Mitad mais uno – fica, acima de onde o time visitante troca de uniformes, realiza sua preleção e seu aquecimento: “aqui é proibido sentar ou ficar parado. E que graças a arquitetura dos degraus, a acústica é excelente, irradiando o som tanto para la cancha como para abaixo, desestabilizando adversários menos experientes”, exalta Nórman.
Zapata ainda explica o porquê das cores do Boca serem o azul e o amarelo: “as hoje tradicionais cores do clube provêm de um acordo entre seus fundadores. Às margens do rio Riachuelo, os cinco jovens decidiram que o primeiro barco que passasse as definiriam. A primeira embarcação a aportar foi uma de origem sueca, determinando o manto mais consagrado do futebol argentino”. No tour percebemos a majoritária presença de brasileiros e descobrimos que somos praticamente nós que financiamos o Museo de La Pasión Boquense, “são cerca de 70% de visitantes do Brasil, outros 20% da Alemanha, Holanda, Inglaterra e outros 10% do Chile, Uruguai, Paraguai ou Equador. São muito pouco argentinos que nos visitam”. No dia de nossa visita conversamos com Steve Baymound, músico inglês que estava passando suas férias em Buenos Aires, “o Boca Juniors é bem famoso na Inglaterra e como o futebol é muito popular por lá, resolvi dar uma passada pra ver como é. (…) É possível comparar as instalações daqui com as de clubes medianos do futebol da Inglaterra ou com os estádios mais antigos, sem tanto luxo”.
O Club Atlético Boca Juniors é a instituição futebolística mais vitoriosa e popular da Argentina. É uma ótima sugestão para os adeptos do futebol de todo o planeta bola, porém é um programa muito aquém daquele proporcionado pelos protagonistas financeiros do futebol mundial, como Real Madrid, Milan ou Machester United.
Por: André Lima e Caio Prestes
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