skip to Main Content

Trump reacendeu interesse por jornalismo, diz ex-editor do ‘Guardian’

O jornalismo, sob fogo do novo presidente americano, voltou a ser valorizado, comemora Alan Rusbridger, ex-editor-chefe do jornal britânico “The Guardian”. Por outro lado, aconselha, a corrosão publicitária causada pelo duopólio Facebook-Google não esconde o fato de que os jornais precisam fechar com eles “um pacto com o diabo”.

Rusbridger, 63, nasceu em Lusaka (atual Zâmbia), e estudou em Cambridge (Reino Unido). Entrou para o “Guardian” em 1979, como repórter, e virou editor-chefe em 1995, lançando o site do jornal dois anos depois. Comandou as coberturas que tornaram o “Guardian” referência mundial, entre 2009 e 2013 (abaixo), e levaram ao primeiro Pulitzer do jornal, nos EUA, em 2014.

Ele editou as reportagens que trouxeram ao mundo as revelações de Edward Snowden e Chelsea Manning, com os desmandos da Agência Nacional de Segurança (NSA) e dos departamentos de Estado e Defesa dos Estados Unidos.

Alan Rusbridger, ex-editor-chefe do jornal "The Guardian". Foto: Oli Scarff/Getty Images
Alan Rusbridger, ex-editor-chefe do jornal “The Guardian”. Foto: Oli Scarff/Getty Images

Ao longo da última década, Rusbridger havia se negado a cobrar pelo acesso on-line, como fizeram o “New York Times” e outros, e liderado uma forte expansão da equipe nos EUA. O prejuízo de U$ 65 milhões em 2015 selou seu afastamento do jornal.

Ele deixou o “Guardian” há menos de dois anos, depois de duas décadas à frente da Redação (1995-2015), e foi depois marginalizado pela nova direção do jornal, que o responsabilizou pelas dificuldades financeiras que vem atravessando.

Agora dirige uma faculdade em Oxford, Lady Margaret Hall, e o Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo, também da universidade. Em entrevista, analisa o jornalismo hoje, que vive o melhor dos tempos e o pior dos tempos, como gosta de falar.

 

Folha – Como o sr. vê os passos que estão sendo tomados por Facebook e Google contra notícias falsas?

Alan Rusbridger – Como um primeiro passo importante: estão reconhecendo que existe um problema. É bom ver que estão pensando sobre isso muito ativamente e levantando propostas. Se você quer ter alguma simpatia por eles, pode dizer que é um problema muito difícil de resolver, simplesmente pela escala em que eles operam. Com bilhões de pessoas, encontrar uma solução que vá funcionar é difícil.

Mas por baixo de tudo está a questão maior do grau em que o Facebook e o Google são editorialmente responsáveis pelo conteúdo que carregam. Isso é algo que não querem reconhecer, e não é difícil entender por quê. Mas acho que em algum momento deverá haver uma discussão com eles sobre exatamente que tipo de empresa são e que responsabilidades têm.

O primeiro grande choque e escrutínio sobre notícias falsas veio com a eleição de Trump. Qual foi o papel que o Facebook, especificamente, desempenhou?

É difícil quantificar mídia social, pelo mero fato de que essas plataformas estão nas mãos de bilhões de pessoas. Não acredito que alguém já tenha uma boa ideia de como isso funciona. Em termos das notícias falsas em si, acho que há categorias diferentes. Há coisas que são deliberadamente inventadas para ganhar dinheiro. Há coisas que foram criadas na campanha para fins políticos. E há coisas que foram compartilhadas negligentemente. Meu palpite é que as notícias falsas tiveram algum impacto na eleição, mas é difícil dizer se foram o fator determinante.

Facebook e Google detêm hoje perto de 70% da publicidade digital nos EUA, um virtual duopólio. Quais são os efeitos disso para o modelo de negócios do jornalismo?

Não é mais possível para as empresas jornalísticas sustentarem seu negócio da forma como sempre fizeram, por meio de uma combinação de assinatura e publicidade. Mas é difícil responsabilizar o Facebook, dizendo: “vocês não deveriam ser uma empresa de tecnologia tão brilhante”. Acredito que existem conversas que as empresas noticiosas precisam ter com Facebook e Google, por exemplo, quanto a ser justa a divisão hoje do valor que as notícias representam para eles.

Por sua própria experiência, esses dois gigantes de tecnologia são parceiros confiáveis para o jornalismo? É possível trabalhar com eles como os jornais têm tentado fazer ao longo dos anos, em vários projetos?

Bem, é um pacto com o diabo. Os jornais não precisam estar no Facebook ou no Google, em vários momentos já tentaram evitar. Ninguém os está forçando a estarem lá. Mas normalmente, quando você fala com as pessoas que comandam essas empresas, elas dizem: “Não podemos nos dar ao luxo de não estar lá, porque é onde o público está. Temos que estar, mesmo que não gostemos”. Acho que estamos conectados. É impossível imaginar empresas jornalísticas boicotando o Google ou o Facebook, então temos que trabalhar com eles. Mas os nossos interesses nem sempre são os mesmos. Suponho que essa seja a maneira de abordar isso.

Acredito que precisa existir um diálogo contínuo. Pessoas como Zuckerberg [presidente do Facebook] estão conscientes do enorme poder que têm agora, mas há uma responsabilidade que vêm com esse poder. E muitas das questões que eles estão enfrentando agora são questões que os jornalistas estão acostumados a considerar. Como no caso da proibição da imagem da guerra do Vietnã [de uma criança correndo nua após ser atingida por bomba]. Foi uma tentativa de usar algoritmos para tomar decisões que as empresas noticiosas tomam há séculos por meio de julgamento humano. Essa é uma das dificuldade de tentar soluções em escala tão vasta.

O presidente eleito Donald Trump discursa após resultado que confirmou sua vitória nas eleições dos EUA, no hotel Hilton Midtown, em Nova York. Foto: Timothy A. Clary/AFP
O presidente eleito Donald Trump discursa após resultado que confirmou sua vitória nas eleições dos EUA, no hotel Hilton Midtown, em Nova York. Foto: Timothy A. Clary/AFP

 

A julgar por esse duopólio na publicidade digital, o sr. acha que ainda é possível para um jornal de acesso gratuito como o “Guardian” sobreviver na internet?

Acredito que sim. Haverá perguntas quanto ao seu tamanho e à sua missão, e eles podem ser obrigados a fazer menos do que fizeram antes. Tenho certeza de que estão pensando sobre tudo isso agora.

Mas a grande esperança diante do que aconteceu nos últimos três meses é que as pessoas, que haviam se tornado um pouco desgostosas quanto ao valor dos jornalistas e das notícias, estão agora acordando e dizendo: “Não conseguimos imaginar um mundo sem jornalismo”. Sem as suas fontes viáveis de notícias. As assinaturas do “New York Times” e do “Washington Post” estão subindo porque as pessoas estão pensando: “Na verdade, acreditamos que há um valor, para nós, em ler”. As pessoas estão acordando para o valor do jornalismo. Podemos agradecer Donald Trump por isso.

Os últimos anos foram de grande jornalismo, desde as primeiras reportagens com base em WikiLeaks e Snowden até os esforços renovados dos jornais americanos, agora, sobre Trump. O sr. diria que, como na abertura do romance de Charles Dickens, “História de Duas Cidades”, é o melhor dos tempos e o pior dos tempos para o jornalismo?

[risos] Acho que eu já disse isso uns dez anos atrás. São duas verdades simultâneas. Algumas das técnicas jornalísticas que podemos usar agora são assombrosas, a nossa relação com o público é muito mais próxima e mais valiosa, podemos chegar a audiências infinitamente maiores do que em qualquer momento na história. Então, muito do jornalismo hoje é fantástico.

Mas não se pode ignorar o fato de que ele está terrivelmente ameaçado e que temos que repensar o que é o jornalismo e como ele se relaciona com a audiência e com o mundo moderno em que todos podem se comunicar. O presidente americano de certa maneira sente que não precisa da mídia, que pode se comunicar diretamente ao povo, e isso é em parte verdade. Portanto, há um ambiente completamente mudado para o que fazemos, mas ao mesmo tempo há uma valorização tão maior do que fazemos.

Edward Snowden discursa durante apresentação do prêmio Sam Adams, em Moscou. Foto: Associated Press
Edward Snowden discursa durante apresentação do prêmio Sam Adams, em Moscou. Foto: Associated Press

 

Pelo que vimos na cobertura da campanha, o sr. acredita que Trump tem algum motivo para questionar a imprensa. Foram cometidos muitos erros?

Eu não penso assim. Acho que a imprensa americana foi bastante bem. Você pode argumentar que eles estavam desconectados da sociedade, porque subestimaram as forças que elegeram Trump. É a acusação mais séria que se pode fazer. Por outro lado, se olhar para o jornalismo como uma alternativa, como um foco de poder para aplicar os freios e contrapesos tradicionais, houve grandes reportagens e os jornalistas fizeram o que deveriam ter feito.

Agora, havia um problema maior. Por qualquer motivo, a confiança neste momento no jornalismo é baixa e fez esse tipo de jornalismo ter um efeito menor do que deveria. E você percebe que o atual presidente está tentando diminuir o valor do jornalismo, desacreditá-lo, deslegitimá-lo. É uma tendência perigosa, mas acredito que seja porque o jornalismo em si foi tão bom que ele sentiu a necessidade de fazer isso.

O sr. diria a mesma coisa sobre a imprensa britânica, na cobertura da campanha do “brexit” (saída do Reino Unido da União Europeia)?

Foi diferente. A acusação a fazer à imprensa britânica é que a maioria estava ao lado do “brexit” e não fez justiça aos argumentos em favor de permanecer na União Europeia. Esta foi uma decisão por margem estreita, na qual você podia levantar argumentos para ambos os lados. E foi uma decisão complexa. A imprensa britânica falhou com as pessoas ao não explicar a complexidade ou fazer justiça a ambos os lados da discussão. Só apresentou um deles, e isso não é o que a imprensa deve fazer.

Capa do Daily Mirror traz a frase "estamos fora" e destaca "queda livre" da libra. Foto Reprodução
Capa do Daily Mirror traz a frase “estamos fora” e destaca “queda livre” da libra. Foto Reprodução

 

Haverá eleições neste ano na França, Alemanha e Holanda. O que a imprensa deve fazer de diferente em relação ao que se viu nos EUA e no Reino Unido?

Manter-se em contato com as pessoas, quer dizer, sair da Redação, falar com as pessoas. Certificar-se de que não está desconectada da sociedade. E que está retratando os sentimentos verdadeiros das pessoas, de modo que elas sintam que a imprensa não é uma instituição de elite, que sintam que a imprensa as representa e aos seus pontos de vista. Mas também deve levar às pessoas informações desconfortáveis sobre ambos os lados da discussão, informações com que elas podem não concordar ou sequer querer ouvir.

Na verdade, manter o básico do trabalho: classificar o que é verdade e o que é falso, fazer isso de forma rápida e precisa, dar contexto. Muitos dos conceitos básicos não vão mudar, não existe uma reinvenção do jornalismo, nesse sentido. Eu acho imprudente se voltar para uma oposição em grande escala e dizer: “Nosso trabalho é resistir”. Não é isso, é testemunhar.

Tem-se debatido alfabetização em mídia [“media literacy”] como uma forma de combater as notícias falsas. O sr., que está agora em Oxford e no Instituto Reuters, é a favor?

Sim. Eu me choco muito agora até quando encontro estudantes brilhantes, pergunto suas fontes de informação e eles respondem: “Facebook”. Eu insisto: “Sim, mas de onde vem, antes do Facebook?”. Eles olham para você com estranheza, sem entender a pergunta. É muito importante sensibilizar os jovens para a existência de fontes confiáveis e não confiáveis. Que eles precisam questioná-las e não devem compartilhar coisas a menos que saibam ser verdadeiras. As pessoas todas têm responsabilidade, como os jornalistas, em relação à informação. E isso tudo tem a ver com alfabetização sobre mídia.

O sr. acredita que poderia fazer parcerias com Facebook e Google, por exemplo, para isso?

Sim, imagino que eles se interessariam e estariam muito abertos a isso. Seria algo positivo que poderiam fazer.

 

Fonte: Folha de S. Paulo

Por: Nelson de Sá

This Post Has 0 Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Back To Top