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Saiba porque argentinos ainda escondem dólares em casa

[:pb]Desvalorização do peso argentino, altas taxas de inflação e de impostos e falta de confiança em bancos fazem com que portenhos recorram à moeda norte-americana, guardando-a em casa ou em caixas de segurança.

JULIA CAMPOS

DE BUENOS AIRES

Argentinos escondem dólares em locais curiosos, como, por exemplo, na geladeira. Foto: Julia Campos

Esconder dinheiro no colchão para nós, brasileiros, é um hábito que só volta à tona quando queremos brincar com alguém, como sinônimo para avareza ou senilidade. No entanto, para os argentinos, a expressão se transforma em realidade. As constantes crises econômicas do país fizeram com que o peso argentino sofresse consecutivas perdas de valor. Por isso, boa parte da população, quando pode, converte suas economias em dólar, já que é uma moeda mais estável do que o peso.

Os pais de Agustina escondem os dólares da família no castelo, que hoje serve de estante para materiais de limpeza.

A estudante Agustina*, 18 anos, conta que, desde que se lembra, seu pai, 64, e sua mãe, 52, escondem dólares em casa, e que é algo da cultura econômica local. “Desde jovem meu pai especulava com dólares. Sempre escondemos dinheiro”. A família oculta os dólares na geladeira, e em outros locais, no mínimo, curiosos. “Eu tinha um castelo que ficava na sala de madeira quando eu era pequena, e ficava cheio de bichos de pelúcia. Agora usamos como prateleira para colocar suprimentos de limpeza, e colocamos os dólares do lado deles. Também colocamos em uma caixa de lã, onde ficam os objetos que minha mãe usa para tecer crochê. O lugar é indecifrável.”

Segundo a estudante, a família guarda dinheiro em casa por dois motivos – O primeiro, é pelo medo de serem roubados. “Se nos fizessem uma emboscada, teríamos reservas de dinheiro para substituir o que foi perdido. E por fim, é um hábito que ajuda a poupar. Se não vemos os dólares, não lembramos que temos e, por consequência, não gastamos.”

Ela não soube estimar a quantia que está escondida pela casa, já que o dinheiro é dos pais, e disse que não converte as economias em dólar porque gasta muitos pesos no dia a dia, e não sente necessidade da conversão. Ao questionar se o hábito de esconder dólares é mais comum entre pessoas mais velhas, Agustina responde que não, que todos o fazem. “Conheço um garoto que converteu 25 mil pesos em dólar e os guardava dentro de meias velhas em uma gaveta com chaves.”

De acordo com o economista e professor do curso de Economia Política da Universidade Nacional de La Plata, Matín Tetaz, os 70 anos de inflação que afetam o país é um dos principais motivos pelos quais pessoas escondem dólares. “Em 70 anos, o peso argentino perdeu 13 zeros. Evidentemente que, quem tinha seu dinheiro em pesos, viu tudo evaporar.”

Alejandro Rebossío escreveu o livro Estoy Verde, que trata da relação dos argentinos com o dólar. Foto: Julia Campos

O jornalista Alejandro Rebossío, que lançou, em 2013, o livro “Estoy Verde”, em parceria com o economista Alejandro Bercovich, que trata da relação dos argentinos com a moeda norte-americana, explica que o hábito local de guardar dólares surgiu em 1970. “O comportamento começou com o que chamamos de o Rodrigazo, que ocorreu em 1975 no final do governo de Isabel Perón, quando houve uma forte desvalorização do peso e, em sequência, se abateu um período de hiperinflação sobre país. A partir disto, a classe média passou a guardar dólares e o valor dos imóveis passou a ser calculado com base na moeda estrangeira. Até este momento, somente os mais ricos tinham acesso aos dólares. A ditadura militar, que ocorreu entre 1976 e 1983, firmou mais medidas que ratificaram a desvalorização do peso, como a desregularização financeira, a desregularização econômica, que contou com desvalorizações programadas que abriram mais portas para o dólar.”

Martín Tetaz ainda aponta que os argentinos não confiam nos bancos para guardar o dinheiro. “Quando houve um episódio, como por exemplo, o Plano Bonex, nos anos 90, os que faziam depósitos a prazos fixos, receberam um “bônus” do governo em troca de seus depósitos”. Prazo fixo é o termo usado para referenciar uma transação financeira, quando o dinheiro é depositado nos bancos com juros pré-fixados. Esta estratégia era utilizada para incentivar o depósito em contas dos bancos.

“Voltou a ocorrer algo similar em 2001 com o Corralito, quando se confiscou os depósitos das poupanças. São duas situações nas quais as pessoas que confiaram nos bancos perderam seu dinheiro ou parte dele”, diz ele. Agustina ratifica a fala do economista, e diz que sua família nunca guardou dinheiro em contas de banco.

Florencia*, 51, foi uma, entre milhares de pessoas, que foi vítima do Corralito. Ela conta que tinha a quantia de 90 mil dólares no banco, dinheiro que recebeu como herança dos pais. “Pude retirar uma parte do dinheiro após uma decisão judicial. De todo o dinheiro que tinha no banco, recebi 67 mil dólares e o resto se perdeu ou recuperei pouco em pesos”, conta. Como forma de garantir que não perderia outra parte do dinheiro, ela comprou um apartamento. “Minha geração dava muito valor aos imóveis, embora o aluguel fosse barato. Agora as pessoas têm mais possibilidades de investir”.

Ela diz que já não confia mais nos bancos depois de perder dinheiro, e que também não junta muito dinheiro a ponto de ter que esconder ou colocar em caixas de segurança. “Prefiro viajar ou comprar alguma coisa da qual eu precise”. Apesar de não fazer mais economias, Florencia ainda compra dólares, quando pode, como forma de se proteger da inflação. “O preço das coisas mais importantes se calcula em dólar, como por exemplo passagens aéreas, os imóveis, honorários a longo prazo”. Ela afirma que, se um dia tiver que juntar dólares, os guardaria em casa, mesmo sendo arriscado, já que os bancos não são mais uma possibilidade para ela.

Altos impostos fazem com que economia ande à sombra da informalidade

Martín Tetaz ainda aponta um terceiro motivo pelo qual argentinos guardam suas economias em casa ou em caixas de segurança. “Qualquer atividade produtiva é destruída com as taxas de impostos. Paga-se mais de 50% de imposto para qualquer coisa que se faça na Argentina, o que faz com que boa parte da atividade econômica do país ocorra em condições informais, à sombra, para que o dinheiro não seja detectado pelo fisco e não se pague os impostos. Este dinheiro, que não se declara, não se pode depositar em um banco. O que se faz é guardar esta quantia em uma caixa de segurança ou diretamente no colchão.”

De acordo com o economista, a consequência dos problemas citados e o hábito que o argentino criou em resposta a eles é 43% do Produto Interno Bruto (PIB) argentino fora de circulação. “O total de dinheiro que está fora do sistema e, portanto, está nas casas das pessoas, é difícil de calcular, justamente porque não está declarado, e só podemos fazer estimativas. A estimativa mais conservadora diz que 280 bilhões de dólares estão fora de circulação. Estão ou em caixas de segurança, debaixo do colchão, ou em uma conta no exterior, que não pode ser detectada. Outras estimativas chegam a dobrar este valor.”

Caixa de segurança

Uma opção para quem não quer depositar suas economias em contas do banco, mas também não quer se arriscar guardando quantias significativas em casa são as caixas de segurança. Elas são oferecidas pelos próprios bancos. No entanto, não se declara o que está dentro. Podem ser colocados outros objetos como joias ou artigos de valor sentimental, dinheiro local ou moedas estrangeiras, entre outros. Segundo Tetaz, atualmente no país, existem 300 mil caixas de segurança.

A escolha pelo dólar

Quem está fora da Argentina ou não conhece o hábito local, pode ter certa dificuldade em compreender a relação da população com a moeda originária dos Estados Unidos da América. Muitos lugares, como hotéis, restaurantes e museus, aceitam a moeda. As pessoas compram quando podem, e fazem contas de conversão de cabeça.

Alejandro Rebossío não vê o hábito argentino como um tipo de obsessão. “É um comportamento racional e cultural que tem a ver com 50 anos de desvalorização do peso argentino e fortes índices de inflação”. Ele pondera que todas as classes sociais entendem a importância e influência do dólar na economia local. “Além de converter as economias em dólares, a classe média e os ricos também fazem dinheiro comprando e vendendo a moeda norte-americana. As classes mais pobres, que não estão conectadas com o universo do dólar, e que moram em bairros e residências humildes, sabem que, quando o dólar sobe, o preço das mercadorias que consomem, principalmente alimentos, também vai subir no país. São derivados das commodities, ou seja, das matérias primas que são comercializadas a nível internacional, como o trigo, milho e combustível e, portanto, sofrem com o aumento dos preços. Por isso até os pobres sabem que o aumento do dólar impacta sua vida cotidiana.”

“Para os argentinos, o dólar é como um seguro, como quando você faz uma apólice para o seu carro, e não vai usar quase nunca, porém quando precisar, o seguro vai cobrir o que precisar. Aqui é parecido com o dólar. Nos últimos 70 anos, houve 15 crises econômicas no país, e em 14 delas, a moeda nacional perdeu muito, e quem tinha suas economias em dólares se salvou, inclusive com alguma diferença a favor. Por isso, os argentinos esperam uma crise, ou qualquer situação parecida, com seu dinheiro convertido em dólares”, complementa Tetaz.

Ele aponta que o hábito é extremamente prejudicial para a economia, deixando-a ainda mais fragilizada. “A Argentina tem quantia suficiente para gerar financiamento para todas as atividades produtivas, inclusive a do próprio Estado, mas o dinheiro está fora do sistema, em dólares. Estamos aumentando a taxa de juros desta moeda, pagamos índices altíssimos pela quantia que pedimos, mas ao mesmo tempo, emprestamos aos Estados Unidos muito dinheiro, financiando e juntando muitos dólares, e não recebendo nenhuma vantagem por isso.”

A solução do problema, para Martín, são muitos anos de estabilidade e controle da inflação e recuperação do peso argentino. “Não há outra solução. Comento sobre a experiência de Israel. O país teve uma hiperinflação do ano de 1984 a 1992, logo tinha uma inflação relativamente alta, como tem a Argentina agora. Depois do fim da hiperinflação, o país levou dez anos para abaixar o índice e, ainda assim, de 2002 a 2008, 95% dos contratos de aluguel de propriedades eram feitos em dólares. Depois de mais oito anos de estabilidade na moeda local, os israelenses começaram a realizar as transações na moeda local. Levou muitos anos para que a população parasse de pensar em dólares e começasse a pensar na moeda nacional.

(*) Os nomes foram alterados para proteger a identidade das fontes

JULIA CAMPOS é jornalista e participou do “Jornalismo sem Fronteiras”, que leva jornalistas e estudantes de comunicação a Buenos Aires para um mergulho de 10 dias no trabalho de correspondente internacional.[:en]Desvalorização do peso argentino, altas taxas de inflação e de impostos e falta de confiança em bancos fazem com que portenhos recorram à moeda norte-americana, guardando-a em casa ou em caixas de segurança.

Argentinos escondem dólares em locais curiosos, como, por exemplo, na geladeira. Foto: Julia Campos 

Esconder dinheiro no colchão para nós, brasileiros, é um hábito que só volta à tona quando queremos brincar com alguém, como sinônimo para avareza ou senilidade. No entanto, para os argentinos, a expressão se transforma em realidade. As constantes crises econômicas do país fizeram com que o peso argentino sofresse consecutivas perdas de valor. Por isso, boa parte da população, quando pode, converte suas economias em dólar, já que é uma moeda mais estável do que o peso.

Os pais de Agustina escondem os dólares da família no castelo, que hoje serve de estante para materiais de limpeza.

A estudante Agustina*, 18 anos, conta que, desde que se lembra, seu pai, 64, e sua mãe, 52, escondem dólares em casa, e que é algo da cultura econômica local. “Desde jovem meu pai especulava com dólares. Sempre escondemos dinheiro”. A família oculta os dólares na geladeira, e em outros locais, no mínimo, curiosos. “Eu tinha um castelo que ficava na sala de madeira quando eu era pequena, e ficava cheio de bichos de pelúcia. Agora usamos como prateleira para colocar suprimentos de limpeza, e colocamos os dólares do lado deles. Também colocamos em uma caixa de lã, onde ficam os objetos que minha mãe usa para tecer crochê. O lugar é indecifrável.”

Segundo a estudante, a família guarda dinheiro em casa por dois motivos – O primeiro, é pelo medo de serem roubados. “Se nos fizessem uma emboscada, teríamos reservas de dinheiro para substituir o que foi perdido. E por fim, é um hábito que ajuda a poupar. Se não vemos os dólares, não lembramos que temos e, por consequência, não gastamos.”

Ela não soube estimar a quantia que está escondida pela casa, já que o dinheiro é dos pais, e disse que não converte as economias em dólar porque gasta muitos pesos no dia a dia, e não sente necessidade da conversão. Ao questionar se o hábito de esconder dólares é mais comum entre pessoas mais velhas, Agustina responde que não, que todos o fazem. “Conheço um garoto que converteu 25 mil pesos em dólar e os guardava dentro de meias velhas em uma gaveta com chaves.”

De acordo com o economista e professor do curso de Economia Política da Universidade Nacional de La Plata, Matín Tetaz, os 70 anos de inflação que afetam o país é um dos principais motivos pelos quais pessoas escondem dólares. “Em 70 anos, o peso argentino perdeu 13 zeros. Evidentemente que, quem tinha seu dinheiro em pesos, viu tudo evaporar.”

Alejandro Rebossío escreveu o livro Estoy Verde, que trata da relação dos argentinos com o dólar. Foto: Julia Campos

O jornalista Alejandro Rebossío, que lançou, em 2013, o livro “Estoy Verde”, em parceria com o economista Alejandro Bercovich, que trata da relação dos argentinos com a moeda norte-americana, explica que o hábito local de guardar dólares surgiu em 1970. “O comportamento começou com o que chamamos de o Rodrigazo, que ocorreu em 1975 no final do governo de Isabel Perón, quando houve uma forte desvalorização do peso e, em sequência, se abateu um período de hiperinflação sobre país. A partir disto, a classe média passou a guardar dólares e o valor dos imóveis passou a ser calculado com base na moeda estrangeira. Até este momento, somente os mais ricos tinham acesso aos dólares. A ditadura militar, que ocorreu entre 1976 e 1983, firmou mais medidas que ratificaram a desvalorização do peso, como a desregularização financeira, a desregularização econômica, que contou com desvalorizações programadas que abriram mais portas para o dólar.”

Martín Tetaz ainda aponta que os argentinos não confiam nos bancos para guardar o dinheiro. “Quando houve um episódio, como por exemplo, o Plano Bonex, nos anos 90, os que faziam depósitos a prazos fixos, receberam um “bônus” do governo em troca de seus depósitos”. Prazo fixo é o termo usado para referenciar uma transação financeira, quando o dinheiro é depositado nos bancos com juros pré-fixados. Esta estratégia era utilizada para incentivar o depósito em contas dos bancos.

“Voltou a ocorrer algo similar em 2001 com o Corralito, quando se confiscou os depósitos das poupanças. São duas situações nas quais as pessoas que confiaram nos bancos perderam seu dinheiro ou parte dele”, diz ele. Agustina ratifica a fala do economista, e diz que sua família nunca guardou dinheiro em contas de banco.

Florencia*, 51, foi uma, entre milhares de pessoas, que foi vítima do Corralito. Ela conta que tinha a quantia de 90 mil dólares no banco, dinheiro que recebeu como herança dos pais. “Pude retirar uma parte do dinheiro após uma decisão judicial. De todo o dinheiro que tinha no banco, recebi 67 mil dólares e o resto se perdeu ou recuperei pouco em pesos”, conta. Como forma de garantir que não perderia outra parte do dinheiro, ela comprou um apartamento. “Minha geração dava muito valor aos imóveis, embora o aluguel fosse barato. Agora as pessoas têm mais possibilidades de investir”.

Ela diz que já não confia mais nos bancos depois de perder dinheiro, e que também não junta muito dinheiro a ponto de ter que esconder ou colocar em caixas de segurança. “Prefiro viajar ou comprar alguma coisa da qual eu precise”. Apesar de não fazer mais economias, Florencia ainda compra dólares, quando pode, como forma de se proteger da inflação. “O preço das coisas mais importantes se calcula em dólar, como por exemplo passagens aéreas, os imóveis, honorários a longo prazo”. Ela afirma que, se um dia tiver que juntar dólares, os guardaria em casa, mesmo sendo arriscado, já que os bancos não são mais uma possibilidade para ela.

Altos impostos fazem com que economia ande à sombra da informalidade

Martín Tetaz ainda aponta um terceiro motivo pelo qual argentinos guardam suas economias em casa ou em caixas de segurança. “Qualquer atividade produtiva é destruída com as taxas de impostos. Paga-se mais de 50% de imposto para qualquer coisa que se faça na Argentina, o que faz com que boa parte da atividade econômica do país ocorra em condições informais, à sombra, para que o dinheiro não seja detectado pelo fisco e não se pague os impostos. Este dinheiro, que não se declara, não se pode depositar em um banco. O que se faz é guardar esta quantia em uma caixa de segurança ou diretamente no colchão.”

De acordo com o economista, a consequência dos problemas citados e o hábito que o argentino criou em resposta a eles é 43% do Produto Interno Bruto (PIB) argentino fora de circulação. “O total de dinheiro que está fora do sistema e, portanto, está nas casas das pessoas, é difícil de calcular, justamente porque não está declarado, e só podemos fazer estimativas. A estimativa mais conservadora diz que 280 bilhões de dólares estão fora de circulação. Estão ou em caixas de segurança, debaixo do colchão, ou em uma conta no exterior, que não pode ser detectada. Outras estimativas chegam a dobrar este valor.”

Caixa de segurança

Uma opção para quem não quer depositar suas economias em contas do banco, mas também não quer se arriscar guardando quantias significativas em casa são as caixas de segurança. Elas são oferecidas pelos próprios bancos. No entanto, não se declara o que está dentro. Podem ser colocados outros objetos como joias ou artigos de valor sentimental, dinheiro local ou moedas estrangeiras, entre outros. Segundo Tetaz, atualmente no país, existem 300 mil caixas de segurança.

A escolha pelo dólar

Quem está fora da Argentina ou não conhece o hábito local, pode ter certa dificuldade em compreender a relação da população com a moeda originária dos Estados Unidos da América. Muitos lugares, como hotéis, restaurantes e museus, aceitam a moeda. As pessoas compram quando podem, e fazem contas de conversão de cabeça.

Alejandro Rebossío não vê o hábito argentino como um tipo de obsessão. “É um comportamento racional e cultural que tem a ver com 50 anos de desvalorização do peso argentino e fortes índices de inflação”. Ele pondera que todas as classes sociais entendem a importância e influência do dólar na economia local. “Além de converter as economias em dólares, a classe média e os ricos também fazem dinheiro comprando e vendendo a moeda norte-americana. As classes mais pobres, que não estão conectadas com o universo do dólar, e que moram em bairros e residências humildes, sabem que, quando o dólar sobe, o preço das mercadorias que consomem, principalmente alimentos, também vai subir no país. São derivados das commodities, ou seja, das matérias primas que são comercializadas a nível internacional, como o trigo, milho e combustível e, portanto, sofrem com o aumento dos preços. Por isso até os pobres sabem que o aumento do dólar impacta sua vida cotidiana.”

“Para os argentinos, o dólar é como um seguro, como quando você faz uma apólice para o seu carro, e não vai usar quase nunca, porém quando precisar, o seguro vai cobrir o que precisar. Aqui é parecido com o dólar. Nos últimos 70 anos, houve 15 crises econômicas no país, e em 14 delas, a moeda nacional perdeu muito, e quem tinha suas economias em dólares se salvou, inclusive com alguma diferença a favor. Por isso, os argentinos esperam uma crise, ou qualquer situação parecida, com seu dinheiro convertido em dólares”, complementa Tetaz.

Ele aponta que o hábito é extremamente prejudicial para a economia, deixando-a ainda mais fragilizada. “A Argentina tem quantia suficiente para gerar financiamento para todas as atividades produtivas, inclusive a do próprio Estado, mas o dinheiro está fora do sistema, em dólares. Estamos aumentando a taxa de juros desta moeda, pagamos índices altíssimos pela quantia que pedimos, mas ao mesmo tempo, emprestamos aos Estados Unidos muito dinheiro, financiando e juntando muitos dólares, e não recebendo nenhuma vantagem por isso.”

A solução do problema, para Martín, são muitos anos de estabilidade e controle da inflação e recuperação do peso argentino. “Não há outra solução. Comento sobre a experiência de Israel. O país teve uma hiperinflação do ano de 1984 a 1992, logo tinha uma inflação relativamente alta, como tem a Argentina agora. Depois do fim da hiperinflação, o país levou dez anos para abaixar o índice e, ainda assim, de 2002 a 2008, 95% dos contratos de aluguel de propriedades eram feitos em dólares. Depois de mais oito anos de estabilidade na moeda local, os israelenses começaram a realizar as transações na moeda local. Levou muitos anos para que a população parasse de pensar em dólares e começasse a pensar na moeda nacional.

(*) Os nomes foram alterados para proteger a identidade das fontes

JULIA CAMPOS é jornalista e participou do “Jornalismo sem Fronteiras”, que leva jornalistas e estudantes de comunicação a Buenos Aires para um mergulho de 10 dias no trabalho de correspondente internacional.[:]

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