skip to Main Content

O estrangeiro

Lionel Messi não encarna a argentinidade, mas construiu sua idolatria a partir de suas próprias identidades

ANDRÉ COSTA BRANCO
LUIZ FERNANDO TEIXEIRA

DE BUENOS AIRES

 

Messi, um ídolo eternizado. Foto por: Sara Abdo

A Síndrome de Asperger é uma condição psicológica do espectro autista, que tem como sintomas maiores uma dificuldade significativa nas interações sociais, interesse por campos específicos de conhecimento e repetição de padrões. Dentro de todo esse quadro, há, no entanto, um outro espectro, o de potencialidades. Lionel Andrés Messi, argentino de Rosário e diagnosticado com a síndrome aos oito anos de idade, tornou-se o melhor jogador de futebol do mundo.

Messi é um ídolo único. E a devoção a um ídolo pode surpreender um observador desavisado. No último dia 26, após o quarto vice pela seleção da Argentina, em que desperdiçou uma cobrança na decisão por pênaltis contra o Chile, Lio, como o atacante é chamado em seu país de origem, respondeu com as seguintes palavras: “No vestiário pensei que acabou para mim a seleção, não é para mim. É o que sinto agora, é uma tristeza grande que volto a sentir. Foram quatro finais, infelizmente não consegui. Era o que mais desejava. É para o bem de todos. Por mim e por todos. Muitos desejam isso”.

Uma semana depois, centenas de argentinos tomaram a Praça da República, em frente ao Obelisco, no centro de Buenos Aires, sob frio e chuva, para apoiar o ídolo e pedir que ele reconsiderasse sua decisão. O evento, um ‘bandeiraço’ aconteceu após intensa campanha nas redes sociais. Um dia após a declaração do jogador, a tag #NoTeVayasLio (‘não se vá, Lio’) era a mais usada do Twitter no mundo, e a campanha ganhou a adesão do presidente Mauricio Macri, que telefonou ao jogador.

INFOGRÁFICO

“Messi temia que a reação fosse tremendamente negativa e não estava pronto para suportar essa pressão. Mas se surpreendeu porque o que aconteceu foi exatamente o oposto”, explica Sebastián Fest, jornalista do diário La Nación. “A maneira com que Messi disse o que disse naquela noite foi bastante emotiva. Acho que as pessoas viram a tristeza que ele sentia”, complementa.

A comoção da Argentina – e do mundo – pode ser reconhecida na atitude de Santiago di Paolo, um dos jovens que idealizaram, o evento no Facebook para chamar ao ato na Praça da República. “Acredito que as críticas são injustas. Este grupo foi o que nos levou ao lugar mais alto e lamentavelmente não pudemos ganhar. Não creio que temos que criticar um jogador por uma bola que não entrou, e sim por seu rendimento no geral”, refletiu di Paolo.

A chuva que tomou pelo ídolo, que nem tem casa na Argentina, fez com que di Paolo ficasse de cama por toda a semana e impossibilitasse um encontro com a reportagem (que também não escapou ilesa da combinação da água com a temperatura de 13°). “A verdade é que não podíamos acreditar nisso e precisávamos registrar a nossa impotência e a nossa tristeza em um ato. A única forma que que nos ocorreu foi organizar um evento no Facebook”, afirmou Di Paolo.

Mesmo com a forte chuva que castigou a capital da Argentina no dia do evento, cerca de mil pessoas participaram do ato – no Facebook, oitenta mil confirmaram presença. A grande repercussão provavelmente alcançou o próprio Messi, de férias com a família nas Bahamas.

O que é certo é que, depois da mobilização, o La Nación cravou que o atacante do Barcelona iria retornar para a seleção. “A pergunta é quando. Não creio que vá ser nos próximos jogos das Eliminatórias, contra Uruguai e Venezuela, mas ele não vai deixar que a Argentina não se classifique para a Copa do Mundo, e, se classificar, está obcecado em ganhar algo com a seleção”, relata Sebastián Fest.

“Se eu não acreditasse que ele poderia voltar, não haveria protesto. Imagino que um movimento de pessoas, e ainda com uma chuva tão forte pode ter o tocado sentimentalmente. Ter se sentido querido pode ter afetado de uma maneira ou outra a sua decisão”, festejou Di Paolo, sobre os supostos resultados de sua manifestação.

ARGENTINIDADE

Para Fest, coautor do livro “Ni Rey ni D10S”, que trata da relação de Messi com a torcida argentina, o craque vem sofrendo com a seleção de seu país ainda antes de começar a atuar por ela. Desde os 14 anos, recusou propostas para vestir a camisa da Espanha, onde foi preparado como profissional, enquanto seu pai insistia em apresentar o portfólio do jovem aos dirigentes argentinos, que mal o conheciam.

“Muitos torcedores o viam com receio, porque não era como Diego Maradona. Os ídolos na Argentina têm que ser todos como Maradona. E Messi é diferente. Fala muito pouco e joga futebol. Maradona joga futebol e faz quase tudo que se pode nessa vida. Messi jamais faria uma tatuagem de Che Guevara”, opina Fest.

O jornalista da TV Cronica Rodolfo Morel acredita que houve uma separação da identidade argentina. “Messi é visto como um estrangeiro dentro de seu próprio país”, afirma. “E estamos sempre fazendo comparações. Comparamos o futebol dele com o de Maradona, ou a história dele com a de Tevez”, em referência ao jogador criado no bairro de La Boca, no subúrbio de Buenos Aires.

De todo modo, a comoção em torno de Messi despertou um sentimento de orgulho nacional. “Não só por questões esportivas (queremos que a Argentina seja campeã e com Messi é mais provável) e até estéticas (o mero deleite de vê-lo jogar), mas sim porque todos queremos que Messi seja campeão jogando pelo seu país: que seja ele quem torça o destino sombrio em que às vezes parecemos presos, e que seja sua risada tímida e drible intrépido que acabe com nosso medo de ganhar e nos consagre”, escreveu o neurocientista Facundo Manes, autor do livro “El cérebro argentino”, em artigo para a revista Noticias de la Semana.

O sociólogo Sergio Levinsky arremata, em artigo da mesma edição: “Messi foi deixando de ser aquele menino que só queria jogar bola e se converteu em um pai e líder, reclamando contra uma AFA corrupta. A sociedade argentina entendeu por fim que há espaço para os dois. Messi é um ídolo que se confirma como tal: a partir de uma derrota, não de um triunfo.”

CRISE DENTRO E FORA DE CAMPO

O anúncio da saída de Messi acabou gerando um efeito dominó: outros expoentes da geração que fracassou em encerrar o jejum de 23 anos sem títulos, como Javier Mascherano, Sergio Aguero e Angel di María, também sinalizaram pela saída; o treinador da seleção Gerardo “Tata” Martino entregou o cargo, junto a toda sua comissão técnica; e, acima de todos eles, a Associação de Futebol Argentino, a AFA, atravessa a pior crise de sua história.

Ainda durante a disputa da Copa América, a FIFA deliberou por intervir na entidade, envolvida em suspeitas de corrupção e fraudes eleitorais. Uma comissão, com até sete membros indicados pela própria FIFA e pela Conmebol, será formada para revisar o estatuto e convocar novas eleições.

Da parte de Messi, uma condenação recaiu sobre ele e seu pai, Jorge Horacio, condenados a 21 anos de prisão pelo Tribunal de Barcelona, por fraude fiscal. A decisão é passível de recurso.

 

ANDRÉ COSTA BRANCO e LUIZ FERNANDO TEIXEIRA são jornalistas e participaram do “Jornalismo sem Fronteiras”, que leva jornalistas e estudantes de comunicação a Buenos Aires para um mergulho de 10 dias no trabalho de correspondente internacional.

This Post Has 0 Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Back To Top