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Aventureiros dos anos 50

Conheça a história do senhor Almir, um dos primeiros a residir em Brasília, ainda em 1957

 

ANA MARIA BARROS

DE BRASÍLIA

Receberam o nome de candangos os primeiros homens que vieram à Brasília antes de sua inauguração. A maioria deles saiu de suas terras e viajaram quilômetros em busca de emprego na futura capital.

Hoje, esse termo significa bravura e coragem, pois foi reconhecido todo o sacrifício e trabalho pesado que os pioneiros de Brasília realizaram. No entanto, no passado, a palavra “candangos” era usada pejorativamente pelos africanos para falar dos colonizadores portugueses.

Escultura feita por Bruno Giorgi em homenagem aos candangos. Foto: Google.

Esses homens acumularam muitas aventuras e têm histórias para contar…

Um homem privilegiado

No terceiro andar do bloco H, na superquadra sul, número 105, atrás de uma porta de madeira marrom com uma imagem de Nossa Senhora, mora um senhor com sua esposa. Hoje, esse senhor é apenas mais um entre todos os 2,6 milhões de habitantes de Brasília. Algumas dezenas de anos atrás, no entanto, ele era uma das importantíssimas pessoas que vieram para construir a futura capital.

Amigo do próprio presidente Juscelino Kubitschek, senhor Almir, de 89 anos de idade, foi designado para instalar o primeiro hospital na nova cidade quando tinha apenas 31 anos. Antes de partir para essa aventura, ele morava no Rio de Janeiro, mais especificamente em Copacabana, e era formado em administração pela Fundação Getúlio Vargas.

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Senhor Almir. Foto: Jacqueline Moraes

Senhor Almir nos cumprimentou com um forte aperto de mão e um abraço. Ele vestia uma camiseta polo branca com os escritos “somos candangos pioneiros”. Em uma mão trazia uma bengala de madeira, e na outra sua simpática cuidadora, Silvana, que o ajudava. Antes de se sentar fez questão de nos mostrar as fotos que estavam no porta retrato na mesa ao lado do sofá: “esse é meu filho mais novo, e essa é minha netinha”. Perguntei quantos filhos ele tinha e a resposta surpreendeu: 6 com a primeira esposa, e mais um com a segunda.

Ele se acomodou no sofá bege de dois lugares ao lado de uma almofada branca estampada com fotos de sua netinha, seu filho e frases de carinho. Pedi para que ele contasse sobre sua vinda à capital. “Eu cheguei à Brasília por acaso”, disse. Começou sua história contando que no dia de sua formatura recebeu o diploma das mãos do presidente Juscelino Kubitschek e disse a ele que, como administrador, queria colocar a mão na massa.  Sua especialização profissional era de administrador hospitalar, e ele trabalhava como tesoureiro para o Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriais (IAPI).

Certo dia, o presidente do IAPI, Dr. José Raimundo, foi até ele e disse: “o senhor vai viajar amanhã para Brasília e levar esses 9 homens para instalar o hospital do IAPI”. É claro que senhor Almir ficou surpreso, “eu sei lá onde fica Brasília”, disse. Dr. Raimundo afirmou que eram ordens do presidente. Afinal, era o que ele queria: colocar a mão na massa.

Após 6 horas de avião até Goiânia, mais uma longa viagem de caminhonete, no dia 5 de maio de 1957, ele e seus 9 companheiros chegaram à futura capital. “Nós olhávamos, um para a cara do outro, e ríamos. Ficamos todos brancos de poeira, e só os olhinhos apareciam”, descreve, “lavamos o rosto em um buraco de água que tinha lá”. Segundo ele, além desse buraco havia na cidade uma loja, o Banco da Lavoura, Banco do Brasil, um hotel, e só.

A construção da cidade foi muito rápida. Para isso, foi usado o trabalho de milhares de homens. Muitos desses operários morriam nas obras, pois bebiam excessivamente (talvez pela solidão ou pelo excesso de trabalho) e, sem querer, caiam dentro dos buracos de pilastras que poderiam ter até 28 metros. Estimativas indicam que o número de trabalhadores na cidade chegou a 80 mil. O número dos que morreram não se sabe ao certo. Sabe-se apenas que foram muitos. A partir de Brasília, o país se tornaria o campeão mundial de acidentes de trabalho.

Caminhonete de transporte dos trabalhadores. Foto: Arquivo Público de Brasília.

O hospital, que senhor Almir viajou tantos quilômetros para instalar, ainda não havia sido construído, porém, a espera não foi longa. Em agosto já estava tudo pronto. Recebeu o nome de Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira (JKO).

O Hospital JKO. Imagem exposta no Museu Vivo da Memória Candanga, em Brasília.

Foi então que ele decidiu que estava na hora de voltar para sua casa, para sua esposa e seus três filhos. Foi pedir ao presidente Juscelino Kubitschek que arranjasse sua volta, mas JK tinha, na verdade, uma surpresa: Stella, esposa do jovem Almir, esperava por ele no carro do presidente.

Durante esse período que ficou sem o marido, ela cuidou dos filhos, até que se cansou de esperar. Foi até Dr. Raimundo e pediu explicações. Ele, surpreso, perguntou se ela não estava recebendo o ordenado pelo trabalho de Almir. Ela disse que havia se casado por amor e não por dinheiro, e embarcou, no mesmo dia, em um avião com Juscelino.

Com a vinda da esposa, Almir ficou preocupado. Não haviam mulheres na cidade. Segundo ele, só havia uma: a mãe de 82 anos de um médico. Além disso, ele não tinha onde morar com a família. “Juscelino mandou que eu construísse uma casa”. Ele construiu várias perto do hospital e convidou alguns médicos que conhecia para irem morar nelas. Até hoje essas casas e o hospital estão de pé. Foram transformados em museu.

Casa construída em 1957, que hoje faz parte do Museu Vivo da Memória Candanga. Foto: Ana Maria Barros

Alguns meses depois nasceu o quarto filho do casal, que leva em sua certidão de nascimento o seguinte texto: nascido no hospital JKO do IAPI, em Brasília, futura capital federal.

No dia 7 de abril de 1967 dona Stella, com apenas 39 anos, faleceu. Ela sofria de asma alérgica e precisava tomar alguns remédios. Em Brasília, não podia comprá-los, pois não havia farmácias. Curiosamente, durante os 10 anos em que viveu na cidade se sentiu curada. Infelizmente, durante um procedimento que necessitava de anestesia teve um choque anafilático e não resistiu. “Ela me deixou sozinho com 6 filhos”.

Apesar da tristeza que trouxe à sala a memória do dia 7 de abril, a conversa continuou. Senhor Almir fez vários cursos, entre eles administração doméstica, para poder cuidar bem dos filhos, e se alegrou ao contar de sua mãe, que “era uma sábia”, como disse, e que o ensinou sobre honestidade, “tanto faz roubar um tostão ou um milhão. Ladrão é ladrão”.

Alguns anos depois, a caminho do Paraná, Almir e seus seis filhos fizeram uma parada no Rio de Janeiro e por lá ficaram por alguns dias. Uma senhora que morava na pensão em que estavam hospedados promoveu um encontro com algumas amigas. “Elas ficaram muito interessadas no viúvo aqui”, conta, animado e gozador.

No meio dessas senhoras uma moça se destacava, chamava-se Maria Teresa e tinha 34 anos. A jovem levou os seis meninos para brincar na praia, “fui até lá buscá-los e estavam balançando e jogando-a no mar. Eu bati uma fotografia e falei: hoje você está rindo, amanhã você vai chorar. Porque eu vou te pedir em casamento. Seis meses depois nos casamos e um ano depois tivemos um filho. Meu sétimo”, concluiu sorrindo.

Sobreviveu a dois infartos e um “piripapo”, como chamou. “Eu estou conversando com vocês e estou feliz da vida porque em 2012 tive um ‘piripapo’”, disse alegre e abrindo os braços. Usar as mãos é uma característica insistente de sua fala. Em um tom mais sério, ele contou que estava quase morrendo na UTI e rezava para que Deus o levasse, até que um de seus filhos foi visitá-lo e pediu que ele não desistisse, pois precisava muito dele e o amava. Desde então está firme e forte com muitos anos pela frente.

Senhor Almir lembra-se com apreço do presidente que construiu a capital, “ele foi um presidente formidável”. Apesar de governar o país, encontrava tempo para jogar baralho com os amigos, “certa vez eu joguei com Dr. Monteiro Perez, Jango, Santana e Juscelino. Eu ganhei de todos. O Santana me deu um ‘tapão’ nas costas e gritou ‘seu cagão, você ganhou’! Até hoje eu sinto dor nas costas por causa disso”, conta, divertindo-se com a lembrança.

Senhor Almir. Foto: Jacqueline Moraes
Cartas de baralho que Almir ganhou de JK, juntamente com anotações feitas durante o jogo. Foto: Jacqueline Moraes

Quando perguntei sobre os sentimentos que tem de Brasília, ele se emocionou, “os dias que passei aqui foram os melhores da minha vida”. Para ele, estar em Brasília naquela época era como estar de férias em uma fazenda, “não tinha ninguém aqui”. Durante sua gestão no IAPI ele construiu prédios e, orgulhoso, contou que plantou 473 árvores. Nessa hora, gritou por sua cuidadora pedindo que ela abrisse as janelas para que pudéssemos vê-las, as árvores que ele plantou.

Para ele, a construção de Brasília foi essencial para aproximar os estados. Sobre a situação política de hoje tinha algo a dizer: “eu não posso admitir que os Três Poderes não se entendam. Os Três estão corrompidos. Felizmente temos vocês, jovens, que são a mudança. Eu peço a vocês que tenham amor ao Brasil”.

Almir de Azevedo Viera é jogador de futebol, mensageiro, administrador, servidor público, fiscal de previdência, primeiro presidente da junta de recursos da previdência social, sócio de vários clubes, auditor da receita federal, marido, pai, mãe, filho, amigo e avô. Usei o verbo no presente porque senhor Almir ainda é todas essas coisas que ele foi, o que vive na memória é experiência, e dessas experiências ele construiu seu caráter e sua sabedoria, pelos quais me encantei no dia que o conheci. Como ele mesmo diz: é um homem privilegiado.

 

 

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