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A morte da viúva negra

Andando pelas ruas de Buenos Aires é impossível ignorar os cartazes de partidos, os “panfleteiros” entregando folhetos políticos, as manifestações com as reivindicações mais diversas ou os grafites altamente politizados. Nas grades que cercam a Casa Rosada, sede do governo, pode-se ler todo tipo de insulto à presidenta Cristina Kirchner, mas também todo tipo de elogio. Na Avenida San Juán, no bairro de San Telmo, as palavras “Cristina = Gestapo” decoram um muro. Porém, o “Gestapo” foi riscado e substituído por “2015”. Parece que em La Reina del Plata tudo tem um toque de política; até os taxistas, em sua maioria simpáticos e falantes, estendem-se ao dar opiniões.

Confira a matéria produzida por nossa correspondente durante o Programa Jornalismo sem Fronteiras em Buenos Aires

É o caso de Roberto Emilio Reyna, 65, com quem conversei por quase uma hora sobre a inflação, o governo Kirchner e as semelhanças (e diferenças) entre a Argentina e o Brasil. Primeiramente, ele afirmou que gostava do governo de Cristina, pois ajuda os pobres. “Os industriais que tem a possibilidade de ajudar não o fazem, por isso há muita inflação”, comentou, “Atualmente, tudo está centrado no dinheiro.” Para Roberto, um governo pode ser bom sendo de esquerda ou de direita, desde que melhore a vida do povo, mesmo minimamente. Ele, para minha surpresa, lê mais de um jornal, além de se informar via internet, rádio e televisão, para formar sua própria opinião.

Essa última parte me surpreendeu; é difícil encontrar quem leia tantos meios diferentes no Brasil, mesmo entre as supostas camadas mais intelectualizadas. Ao falar com o jornalista e ex correspondente em Buenos Aires Clóvis Rossi, descobri que o povo argentino é 100% alfabetizado há vários anos. “O nível educacional é tradicionalmente elevado”, diz Clóvis. “A massa crítica aqui é muito mais forte que no Brasil”.

A IMPRENSA ARGENTINA

Mas não é só por serem mais críticos que os argentinos se informam em mais de um meio: a imprensa argentina, assim como o povo, está polarizada em um maniqueísmo quase cômico. Jornais como Clarín posicionam-se radicalmente contra – quando visitei a redação, um dos editores chegou a chamar Cristina de fascista – enquanto os aliados, como Página 12, exaltam cada ação da viúva de Néstor Kirchner. De acordo com o jornalista argentino Alejandro Rebossio, assim como os jornais que apoiam o governo não publicam os “erros” de Cristina, o Clarín não noticia os “acertos”.

A rixa da viúva negra com o grupo Clarín se dá desde 2009, quando a Lei da Mídia foi promulgada. Essa lei visa, entre outras coisas, à redução dos oligopólios sobre os meios de comunicação, ameaçando diretamente a hegemonia do holding multimídia, cuja extensão vai desde o jornal até canais de TV. A lei limitaria a quantidade de canais de televisão que um único grupo pode ter, além de impedir que tenha canais em televisão aberta e privada simultaneamente, prejudicando novamente o Clarín.

PRETO OU BRANCO

Assim, era de se esperar que fizessem oposição ferrenha à Cristina, configurando um maniqueísmo dentro e fora da imprensa. De acordo com o editor de economia da revista “Noticias de la Semana”, José Antonio Díaz, esse antagonismo fomenta o governo Kirchner, bastante embasado em teorias populistas. O casal K se disse peronista durante toda a carreira política—o que, de acordo com Díaz, é quase obrigatório para garantir uma eleição na Argentina— mas se divide entre atitudes protecionistas e neoliberais, “Se um dia lhe convém ser capitalista, ela compra o discurso capitalista”, comenta Díaz.

Foi o que aconteceu com a estatização da empresa petrolífera YPF. Privatizada no governo Menem (1989-1999), de orientação neoliberal, foi comprada pela espanhola Repsol ainda na década de 90 e re-estatizada em 2012, pela atual presidenta. Entretanto, em oposição à estatização, a YPF fez há poucas semanas uma parceria com a americana Chevron, grande símbolo capitalista e responsável por diversos danos ambientais em países como Equador e Angola.

ECONOMIA

Essa situação é bastante representativa da política de Cristina Kirchner: anunciar nacionalismo, mas agir de forma totalmente contrária. Isso ocorre, embora com os valores invertidos, no âmbito internacional: apesar de ser integrante do Mercosul, a presidenta criou travas burocráticas e legais para produtos brasileiros. “Não deveria, pois é um acordo de livre comércio”, explica Clóvis Rossi.

Para completar o confuso cenário econômico, há a questão dos dólares. Como Alejandro Rebossio explica em seu livro “Estoy verde: dólar. Una pásion argentina”, os argentinos não confiam na moeda nacional, o peso, dada a instabilidade econômica que os assombra desde a derrubada do General Perón, na década de 50. Por causa disso, é o país com mais dólares per capita além dos Estados Unidos.

Na tentativa de ajudar a moeda nacional, Cristina Kirchner estabeleceu um limite de dólares que poderiam ser trocados mensalmente, dificultando a vida de muitos argentinos e dos imigrantes que enviavam dinheiro a suas famílias. Devido a esse limite, o mercado negro de dólares, conhecido como el blue. Os pesos são trocados nas cuevas, locais de venda ilegal dólares, e os dólares, escondidos no colchão.

Contudo, quando foi descoberto que o casal K também tinha seu próprio pé-de-meia com a moeda americana o escândalo foi grande. Ela, que deveria defender a moeda nacional, teve de responder por isso convertendo sua poupança para pesos e pregando a “desdolarização” da economia argentina. “Na Argentina nunca houve um governo tão duas-caras”, diz José Antonio Diaz, “Há uma operação de marketing permanente”.

PRODUÇÃO REAL

Essa operação de marketing se estende, principalmente, para a figura de Cristina Kirchner. A presidenta, como a maioria das argentinas, é vaidosa: usa bastante maquiagem, frequenta a academia e escolhe suas roupas com cuidado.

Desde a morte de seu marido e antecessor, Néstor Kirchner, em 2010, Cristina se veste inteiramente de preto, como demonstração de luto. “É uso político”, diz Clóvis Rossi. “Todo mundo que morre vira santo, principalmente na América Latina e ela aproveita a imagem de viúva”. José Antonio Díaz é ainda mais crítico: “É muito teatral [o luto]”

Cristina enfrenta dificuldade de ser afirmar como mulher numa sociedade machista, sendo sempre vista como “a esposa”. “Ela sempre aparentou estar a sombra do marido, mas sempre teve uma carreira nacional mais relevante”, comenta Clóvis Rossi. Antes da presidência, foi senadora e deputada federal, enquanto Néstor foi governador da província de Santa Cruz. “Com a morte [de Néstor] passou a ser autossuficiente”, explica José Antonio Díaz.

Contudo, as tentativas de autoafirmação da presidenta têm se mostrado bastante peculiares: o uso do Twitter como plataforma para comentar polêmicas políticas (como o recente “sequestro” de Evo Morales), a criação de uma boneca de pano de si mesma (à venda no Museo del Bicentenário, na Casa Rosada), o uso do rádio e da televisão para dar broncas em seus ministros e o projeto de um terceiro mandato. “Um ato que parece uma loucura total, ela faz muito racionalmente”, comenta José Antonio sobre tais ações da presidenta.

A chamada re-reeleição, entretanto, foi confirmada como apenas um sonho dos kirchneristas: nas eleições primárias do dia 12 de agosto, o partido de Cristina, Partido Justicialista, obteve apenas 26% dos votos em todo o país. Essas eleições eram importantes para sondar a possibilidade de tentar a “rere”, como os argentinos apelidaram a re-reeleição.

ASCENÇÃO E QUEDA DO TERCEIRO MANDATO

“É sempre um fator que devasta a popularidade de um presidente”, diz Clóvis sobre a inflação. Os altos índices são maquiados pelo governo por meio de intervenções no INDEC (o IBGE argentino), mas os ajustes salariais não condizem com os números oficiais. Além disso, a revista The Economist anunciou que não publicaria os índices que o governo argentino fornecia, pois não acreditavam que fossem verdadeiros.

Há, ainda, as denúncias de corrupção feitas por Jorge Lanata em seu programa “Periodismo para todos”, exibido pelo Canal El Trece do grupo Clarín, parecem ter fortalecido a oposição. Sergio Massa, representante desta, obteve 35% dos votos nas eleições primárias, enterrando o sonho do terceiro mandato de Cristina.

 

 

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