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Os sinos dobram por todos

O catolicismo ficou em evidência na cidade de Buenos Aires com a ascensão de um Papa argentino. Também sob influência dessa escolha, outras religiões mostram que a mudança não afetou apenas uma parcela de fieis: ninguém é uma ilha.

 

Confira a matéria produzida por nossa correspondente Júlia Mello durante o Programa Jornalismo sem Fronteiras em Buenos Aires

O Papa é pop

À primeira vista Buenos Aires não parece uma cidade crédula. De um urbanismo invejável para as outras metrópoles da América Latina, a cidade se move com a sobriedade de seus habitantes encasacados pelo frio. Os cartazes de vidência, muito comuns em muros e postes de São Paulo, prometem trazer o amor de volta em vinte e quatro horas, (com a palavra “infalível” sempre em negrito). Aqui, eles dão lugar às placas e cartazes com motivos políticos. Basicamente, enquanto aqueles prometem milagres amorosos, esses prometem milagres econômicos ou expõe miríades de causas políticas. Apesar disso, essa visão se complementa ao andar pela cidade e conversar com seus habitantes: o catolicismo, religião majoritária do país, é muito presente em suas vidas, assim como a política.

Na estação de metrô Pueyrredon, um pequeno altar com flores foi feito para homenagear a Santa Lujan, onde muitos passantes interrompem seus caminhos para beijar ou tocar a padroeira dos argentinos. São 250 igrejas e paróquias na cidade, entre elas a Catedral Metropolitana da Praça de Maio, próxima à Casa Rosada, símbolo político e turístico da cidade.

Ao lado da Catedral encontra-se o mausoléu do General San Martín, construído porque o general, que apoiou e delineou a independência da Argentina, era maçon, e não poderia ser enterrado dentro da igreja: um exemplo da força do catolicismo que, apesar de não ter o mesmo brilhantismo de épocas anteriores, ainda perdura.

O novo papa, de nacionalidade argentina, veio para reafirmar a supremacia dessa crença na cidade: ele é assunto de jornais, revistas, publicações especializadas em religião, conversas de bar e até souvenires e pequenas lembranças. Em evento sobre o documentário “El Papa del fin del mundo”, do canal History Channel, Ariel Palácios, jornalista do Estado de S.Paulo, elaborou uma questão que ainda paira no ar: o “Cardeal Bergolio” não tinha muito apoio popular até virar “Papa Francisco”. O que ocorreu para que a opinião pública mudasse?

As outras crenças também sofrerão mudanças em suas dinâmicas com a cidade por causa dessa nova força. Já obrigadas a crescer paralelamente ao catolicismo, o islamismo, a umbanda, o budismo e o esoterismo tendem a perder o espaço que conquistaram com dificuldade. Por outro lado, com uma nova forma de conduzir a religião, pode ocorrer uma abertura e intensificação do diálogo entre as religiões. “O homem é um ser que precisa viver de forma digna. As ações e mensagens de Francisco mudarão a forma como a Igreja Católica atua. Mesmo se você for ateu ou agnóstico, a mudança lhe afetará”, diz o rabino Abraham Skorka, melhor amigo de Francisco, com quem escreveu “Sobre o Céu e a Terra”, livro de reflexões sobre temas religiosos.

Passageira do metrô beija a imagem da Virgem de Lujan.

Homenagem à Virgem de Lujan, protetora dos argentinos, na estação de metrô Pueyrredon. A parede com azulejos padronizados destaca-se entre a sobriedade das outras.

“Oh Maria, minha mãe, Virgem de Lujan! Me ampare e me guie para a Pátria Celestial”

Fora dos muros

Secularmente, as religiões não católicas precisam se adaptar para poder sobreviver. Em um canto quase escondido de uma das principais avenidas da Recoleta, a Santa Fe, está a galeria Patio Del Liceo. Com grafites nas paredes e um design europeu antigo, ela reúne ateliês de arte, livrarias e lojas de discos. “A galeria foi uma escola só para mulheres, até se tornar um shopping, que faliu. O espaço ficou abandonado por um tempo, como um galpão vazio, até que revitalizaram o lugar e transformaram no que é hoje”, diz Luciana Massarino, dona da galeria de arte 488.

Subindo as escadas de mármore velho, vemos uma loja com cortinas roxas de veludo e luz amarelada. “Aqui estão nossas bruxas boas”, completa Luciana. Livros de misticismo, incensos e uma mesa central convivem harmoniosamente no local apertado. Com um terceiro olho e um cabelo loiro reluzente, Dalia Walker me recebeu antes de dar uma aula de leitura de registros akashikos, uma “orientação a partir da leitura de arquivos da alma que vem do passado, do presente e do futuro”.

Dalia, produtora de TV e Cinema, pratica a leitura de Tarô desde que era adolescente. Junto com Isabel, amiga de longa data que possuía o mesmo gosto pela vidência e espiritualidade, idealizou a FE, um espaço com objetivo muito além do que vender produtos místicos e serviços: criar um ambiente de diálogo com espírito jovem para reunir praticantes e estudiosos do esoterismo, que não fosse escondido do mundo exterior, como a maioria.

 “Fui a um lugar que vendia coisas relacionadas à esoterismo, e perguntei para a dona da loja para que servia um certo tipo de Tarô, diferente do que eu praticava. Ela respondeu que não sabia para o que servia a tiragem de cartas em geral. Fiquei muito chocada, como poderia existir um lugar assim?” disse ela, com “I shot the sheriff” de Bob Marley tocando no fundo.

Com a necessidade de vencer o preconceito e frustradas por terem sido expulsas de um bar onde faziam as leituras, criaram um espaço próprio, que hoje reúne jovens e adultos “comprometidos com a transformação e evolução pessoal de todos os que precisam de assistência. As pessoas aqui buscam guias espirituais, conselhos, proteção, informação.” Sobre o Papa Francisco, ela disse que mais do que fazer a religião católica crescer, crê que ele nos fará ver o catolicismo de outra forma. “É um papa que é diferente, mais aberto ao diálogo.”

Virgem Maria, livros esotéricos, ensinamentos de Pitágoras e cartões de lembrança convivem nas prateleiras da FE

Dalia em seu ambiente de trabalho: a FE é uma realização pessoal

Assento e mesa da sala de aula da FE, no piso acima da loja.
Assento e mesa da sala de aula da FE, no piso acima da loja.
Divindades esotéricas ocupam as paredes da sala de aula
Divindades esotéricas ocupam as paredes da sala de aula

Com religiões que vieram recentemente de outros países, como a umbanda e o candomblé, a adaptação à realidade religiosa foi ainda maior: em 2011, a Federação Metropolitana de Religião Africana e Ameríndia da República Argentina sofreu uma represália dos moradores do bairro Flores, onde está localizada, por realizar rituais com sacrifício animal.

“Tivemos os muros de nossa federação pichados com escritos como “Nazis assassinos” e “Deus é amor”, e quebraram nossos vidros com pedras. Os sacrifícios são feitos com bodes e cabras, tenho proteção da lei por liberdade religiosa, mas isso não é o suficiente na Argentina” diz o Babá Alfredo H. Echegaray, por telefone, responsável pela federação.

Mesmo a umbanda sendo a religião que mais cresce no país, hoje em dia seus praticantes consomem os animais como oferenda para os Orixás, para evitar problemas. Além disso, as oferendas têm que ser depositadas em um local deserto, porque a prefeitura não autoriza que sejam deixadas em via pública.

Quanto mais se distancia do catolicismo, maiores são as barreiras: “a umbanda mescla santos católicos com Orixás, já o candomblé, que cultua apenas figuras africanas, sofre mais preconceito.” Sobre o que os argentinos vão buscar na religião, ele é claro: “a maioria quer saber sobre seu futuro nos jogos de búzios e tem desconfiança da religião em seu total, mas acabam voltando por se interessar por nossa visão e cultura.” Não é por acaso que os argentinos se referem a essas casas como templos.

 Política das estrelas

“No começo, a astrologia não tinha reconhecimento oficial. Hoje em dia o governo já nos vê como instituição.” Jerónimo Bringnone, presidente da Fundação Centro Astrológico de Buenos Aires (CABA), é claro ao explicar as diferenças entre o que pensam sobre astrologia nas ruas e o que é ensinado em sua fundação. “Se entram aqui imaginando que astrologia é apenas adivinhação ou charlatanismo, essa visão não dura um minuto e meio. A astrologia tem uma parte técnica, exata, e outra de interpretação humanística. Temos bases sólidas, nada de ocultismos.”

Com reconhecimento mundial, foi a primeira instituição de ensino de astrologia em Buenos Aires. A realidade do lugar é distante do imaginário popular: ao chegar no edifício da rua Juan Domingo Perón, às 19h, a porta estava aberta e segui por dois andares um argentino com um longo casaco preto por escadarias que saíram dos livros de Borges. Ao entrar na escola, porém, percebi que ela tinha um ar sóbrio e impessoal, como qualquer outra instituição de ensino.

Na porta da biblioteca, um aviso: “para cada dia de atraso será cobrado 0,20 pesos por livro”, junto com propagandas de congressos, cursos, e livros, como o cartaz púrpura que anunciava o lançamento de “A influência da astrologia no pensamento de C.G. Jung”, por Alberto B. Chislovski. É o reencantamento do que não é encantável.

Escadarias do prédio da Fundação Centro Astrológico de Buenos Aires

Local de encontro dos alunos entre as aulas

Cartazes de atividades e livros relacionados à astrologia: a diversidade de conhecimentos é celebrada na fundação

A maioria das pessoas chega sabendo o que quer aprender entre os diversos ramos do assunto, com destaque para a astrologia histórico-social, política e mundana. “Todas essas, juntas, são capazes de ajudar líderes políticos a tomarem as melhores decisões, mas acredito que, pelas suas más ações, Cristina Kirchner não consulta astrólogos”, diz Jerónimo. Antes de ter a força que tem hoje, a astrologia passou por momentos ruins na política e na opinião popular. “O peronismo sempre teve uma atração muito positiva com a astrologia, ao ponto de que um astrólogo, peronista, foi dono do país durante dois anos e matou milhares de pessoas”, fala Bringnone sobre José López Rega ou “El Brujo”, como era chamado por seu envolvimento com a ciência interpretativa dos astros. “Pela imagem tão negativa que a astrologia adquiriu nessa época, o peronismo de esquerda, os outros partidos de esquerda e o radicalismo social democrata, todos queriam parecer afastados da astrologia, para que o povo não associasse sua imagem com misticismos ou peronismo de direita”, completa Jerónimo.

 “O Papa gosta de ler Dostoievski”

“De certa forma, as religiões se adaptam às necessidades culturais. No México, por exemplo, o culto à Santa Morte se expandiu por causa da presença do narcotráfico”, diz o padre mexicano José de Jesus na coletiva de imprensa do documentário “O Papa del fin del mundo.” Existindo indubitavelmente uma comoção argentina e latinoamericana sobre a maneira como Bergoglio conduz o Vaticano e a religião católica, o esperado é que, ao passar esses primeiros momentos, abra-se um diálogo sobre a maneira que definimos e entendemos as religiões e a fé – e até mesmo o distanciamento delas. “O Papa gosta de ler Dostoievski. Ele é considerado por muitos o escritor que mais decifrou a alma humana”, diz Ariel Palácios. Enfim, estamos orando.

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