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O poder da presença

Desde o começo do dia, pudemos testemunhar o grande poder que as imagens têm. Não só aquelas que podemos ver, mas aquelas que construímos em nossas mentes a partir de relatos, textos bem escritos e, principalmente, presenciando o passado e o presente.

O cenário é a ESMA – antiga Escola de Mecânica da Armada, hoje Espaço Memória e Direitos Humanos. Lá o presente esmaece, desbota até sumir. Não importam as placas com tinta nova indicando os caminhos, não importam os letreiros brilhantes acima de alguns prédios que indicam seus novos usos como memorial, sede de ação das Madres de Mayo – Linea Fundadora, e base da Unesco e outros órgãos e direitos humanos, não importam os novos monumentos. Ao andar pelas ruas ermas, entre chuva e folhas caídas, entre os prédios construídos há mais de 80 anos e agora destruídos, com portas e tinta descascadas e janelas quebradas, estamos novamente no fim dos anos 70, entre militares e agentes do governo, que conversam e riem normalmente, enquanto dentro de suas paredes homens e mulheres sangram, cegos por capuzes e em silêncio.

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De repente, uma quebra. O Museu das Malvinas e Ilhas do Atlantico Sul é novo. Faz parte do complexo, mas aparenta ser um mundo distante dos demais. Não é. A questão da soberaniasobre as Ilhas Malvinas foi usada como um chamariz da Junta Militar para reacender o patriotismo argentino e desviar os olhares da população e do mundo exterior dos problemas e decadência trazidos pela ditadura. O museu não esconde seu passado. Há uma área inteira dedicada à relação entre a ditadura e a questão das Malvinas, às Madres e Abuelas de Plaza de Mayo, à antiga função da ESMA.

Foi o Museu também que nos trouxe a primeira prova do poder da imagem. A primeira atração é uma sala circular, cercada 360 graus por telas e sistemas de som. Sentados no chão, somos literalmente cercados pela história das Malvinas e a luta do bravo povo argentino contra os invasores ingleses. Falas de presidentes, recortes de jornais, imagens de soldados lutando e sofrendo e aviões mergulhando bravamente em direção ao inimigo.

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Depois do maravilhamento, vem a indignação. É claro que as Malvinas são argentinas, é claro que o povo estava sofrendo, é claro que os ingleses são os culpados, como eles se atrev- É o poder da imagem, da presença. Fazer com que as pessoas vejam aquilo que nós queremos que elas vejam, que sintam o que queremos que sintam. As imagens escolhidas pelo Museu nos fazem sentir como se estivéssemos na luta com eles, são criadas para despertar o patriotismo. Hora de parar e olhar criticamente, pois, além de ser papel do jornalista navegar por entre as persuasões dos dois lados e chegar à realidade, temos que lembrar que nós temos controle sobre esse poder. Através de textos, vídeos e imagens, construímos diariamente a realidade de outras pessoas e temos que ter consciência disso. Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades, já dizia o tio Ben.

Saindo do Museu e de volta a 1980, agora com um guia. Inácio Mondenese é professor de história, especialista na ditadura, e falava com propriedade sobre motivações políticas, as descrições dos acontecimentos, como as pessoas eram sequestradas e mantidas pelas tropas militares. Não embelezava a história, mas também não pintava um retrato de demônios, contava a realidade nua e crua. Estimam-se 30 mil pessoas desaparecidas durante essa época, apenas 8 mil já foram identificadas. Milhares de famílias destruídas porque um de seus integrantes era considerado “subversivo”, agindo contra o governo. Mais uma vez, nos ia sendo mostrada uma imagem viva, e mergulhamos na história sob o olhar atento de centenas de rostos de desaparecidos que enfeitavam as janelas e paredes dos prédios.

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O tour foi extenso, cansativo, debaixo de uma chuva que caia sem parar. O objetivo era nos preparar para o que veríamos na última parte da visita: o Museu de Memórias ESMA, localizado exatamente no prédio onde os detentos eram mantidos e torturados, acima de quartos onde guardas dormiam tranquilamente.

Não há forma de se preparar para o que é estar lá dentro. Não há poder mais forte do que o da presença. Andar pelos espaços escuros onde os prisioneiros eram mantidos, ver as marcas nas paredes onde alguém escavou, provavelmente com as próprias unhas, um desenho, entrar em um quarto onde mal dá para esticar os braços e ouvir da voz de uma antiga detenta que o espaço era usado como sala de parto. O relato de sua experiência ecoa e se mistura com as centenas de outros relatos escritos pelas paredes e somos transportados ao passado. É impossível ficarmos indiferentes, saímos com lágrimas nos olhos, a voz embargada e o peito apertado. Os relatos que os participantes contam depois são assombrados e desesperados, como esse da Larissa Bezerra:

“Eu vejo o que o chão cinzento está molhado. São lágrimas demais. De desespero, de dor, de incerteza, de saudade, de medo. E tem olhos sem esperança me olhando, gritando no silêncio mais alto e doloroso por socorro. Eu morro por dentro.

No fim do corredor tem uma criança sendo levada. E uma mãe perdendo um pedaço seu, perdendo tudo que tem naquele momento.

Há gritos abafados. As paredes descascadas estão manchadas de sangue. Alguém está golpeando as costas de um homem. Alguém está batendo forte na minha cabeça. Alguém golpeou o meu estômago. O meu grito interno de socorro, por todas as vítimas, é tão forte que me ensurdece. Eu não escuto mais nada. Quero a saída. Quero fugir como aquelas mulheres não puderam. Como todas as pessoas torturadas e mortas ali não conseguiram.

Antes de sair, ainda consigo ler rapidamente: “capucha [tipo de divisão muito pequena onde os presos ficavam] é um lugar que cheira morte”. Mas a memória dali também é a morte. Você vê a morte. Você a sente. Você pede, implora, no seu desejo mais profundo, que aquilo continue sendo apenas memória, que jamais seja uma realidade novamente.”

 

O passado prende. A vontade é ficar lá dentro por horas, até decorar cada pedacinho do horror que aquelas pessoas vivenciaram. Quem sabe assim podemos honrar suas memórias? Mas não há tempo. O presente chama. De pé desde às 9h da manhã, sem almoçar e com uma entrevista com a correspondente da Folha de S Paulo, Luciana Dywiniecz, marcada para dali a pouco mais de uma hora e meia, voltamos correndo para o hotel e comemos correndo. Nos reunimos bem a tempo de ouvir Luciana falar, adivinha? Sobre a importância de estar presente.

Em Buenos Aires há apenas 7 meses e volta já marcada para daqui a 2, já que os correspondentes da Folha só ficam na cidade por 9 meses antes de serem substituídos por seus sucessores, Luciana é a correspondente mais nova na cidade e nos faz lembrar, como diz a Bárbara Garcia, que somos jornalistas 25h por dia. Uma pauta pode literalmente vir de qualquer lugar, a qualquer hora, de qualquer experiência e de qualquer pessoa. Lugar de correspondente é na rua, conversando com gente, vivendo a cidade, em ritmo acelerado. “Se alguém te chama para ir em qualquer evento, você vai”, é sua máxima para os primeiros meses.

Também pudera, foi ao comparecer a uma festa para qual foi chamada por um amigo, que Luciana percebeu a grande quantidade de novos imigrantes venezuelanos na cidade. Ao conversar com eles, percebeu que as motivações eram semelhantes. Estava formada a pauta e, logo depois, publicada a matéria.

Outro exemplo: no mesmo dia Luciana esteve presente no bandeiraço para que Messi voltasse à seleção argentina. Escreveu o texto em 40 minutos, publicou e já saiu novamente para cobrir a chegada da ex-presidente Cristina Kirchner em Buenos Aires.

 

Também há outro lugar que é imprescindível que um correspondente (e jornalistas em geral) estejam presentes: as redes sociais. Luciana usa o Twitter para seguir órgãos do governo, buscar pautas e pedir contatos diretos quando a situação necessita (dica: assim que chegar no país, vá à associação de correspondentes locais e a todos os órgãos oficiais se apresentar como jornalista e correspondente, para entrar nas listas oficiais). As redes sociais também são ótimas para se descobrir eventos e buscar fontes. O Linkedin é usado para encontrar especialistas em diversos assuntos.

O único cuidado como correspondente é lembrar que você está mergulhado na vida da cidade, mas seus leitores não estarão. Às vezes, por você estar tão aclimatizado ao local, acha que certas coisas são óbvias e fazem sentido para qualquer um, quando na verdade não fazem. O poder da presença só se manifesta quando você consegue transmitir para os outros como era estar lá e o que de fato aconteceu. Contexto é imprescindível.

É boa a sensação de saber que já estamos há três dias vivendo o que aprendemos nessa preciosa lição. Estamos em Buenos Aires, estamos presentes, de olhos abertos para tudo, literalmente imersos na cidade e em tudo o que acontece nela, indo atrás de todas as deixas. É eletrizante, e ainda não se passou nem metade da viagem.

Amanhã vamos viver e aprender um pouco mais, e voltamos para contar tudo depois.

Até lá!

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