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Números “fora da realidade”
Índices oficiais são contestados
Números “fora da realidade” põem decisão das urnas em xeque na Argentina
RHAYAN LEMES
DE BUENOS AIRES
Índices oficiais como inflação, pobreza e desemprego são contestados e podem mascarar percepção do eleitor sobre situação do país
Quando os números divulgados pelo governo minimizam a realidade enfrentada pela população, a conta não fecha e a desconfiança dispara. É neste cenário de dados desconexos que os argentinos vão às urnas duas vezes nos próximos três meses.
A comparação de candidatos, entretanto, será feita em meio à controvérsia de índices como inflação, produto interno bruto (PIB), desemprego e pobreza divulgados pelo governo atual, contestados por consultorias e atacados pela oposição.
É no caixa de um supermercado em Buenos Aires que o encarregado de obras Oscar Pagano, 38, percebe que os preços dos produtos já não batem mais com os pesos argentinos que tem na carteira. “Perdemos o poder econômico. Antes eu comprava muito mais com a mesma quantidade de dinheiro que hoje já não serve mais”, afirma, sem revelar os valores.
A queixa refere-se à corrosão causada pela inflação que a Casa Rosada diz ser de 15%, enquanto consultorias privadas e algumas províncias governadas pela oposição apontam ser de 27%.
Esse dado está diretamente ligado ao nível de pobreza que, no mês passado, foi taxado pelo governo Cristina Kirchner em apenas 5% em um fórum das Nações Unidas.
O número, baseado em levantamento feito no primeiro semestre de 2013 pelo Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec) – órgão que equivale ao IBGE do Brasil – indica que há na Argentina menos pobres do que na Dinamarca, Finlândia e Noruega.
“Quando [o governo] diz que os preços não sobem tanto, como a realidade mostra, quer afirmar que a cesta básica também subiu pouco e então há menos pobreza, porque ela se mede com o acesso à cesta básica”, destaca o correspondente de Economia do jornal espanhol El País na capital, Alejandro Rebossio.
Por outro lado, segundo o Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina, a pobreza atinge 25% da população. Já o Sindicato dos Trabalhadores do Indec aponta para 27,8%.
As universitárias Ariadna e Leila criticam dados oficiais divulgados pelo governo. Foto por Rhayan Lemes.
“São dados mentirosos. Como aqui têm menos pobres que na Europa? Não é possível. Mentem para encobrir o máximo possível a realidade que afeta as pessoas, principalmente na periferia”, diz a universitária Ariadna Santa Clara, 19 anos, a poucos metros de duas pessoas que dormem em camas improvisadas sobre bancos de uma praça do centro de Buenos Aires, sob cobertores que tentam amenizar os 13ºC de temperatura.
Bancos viram camas improvisadas em praça do centro de Buenos Aires. Foto por Rhayan Lemes.
Ao lado dela, uma amiga também acredita que o governo faz “maquiagem” nos dados. “Não dá para confiar em nada que eles falam e não sei se todo mundo sabe disso”, afirma, cética, a estudante de Ciências Contábeis Leila Niño, 22 anos.
Alejandro Rebossio lembra que a divulgação dos dados mais favoráveis ao governo começou a ser vinculada entre 2007 e 2008 – durante a transição entre a gestão de Néstor e Cristina. “Foi uma maneira de o governo mostrar que a economia ia bem. Mas, com o passar do tempo, isso foi ficando mais difícil de ser feito. No ano passado, o Fundo Monetário Internacional (FMI) pressionou o governo argentino com sanções e os índices passaram a ser mais reais que antes. Mas a polêmica continua”, diz.
A projeção do PIB para este ano também é cercada de desconfiança. A Casa Rosada fala em 1%, e as consultorias sinalizam para crescimento nulo – ou seja, o país dos Kirchner estacionou. Já o desemprego é de 7% para o governo, o que a oposição faz críticas e estende a cerca de 10%.
A divergência entre o que a Casa Rosada divulga e o que os argentinos, como Oscar, Ariadna e Leila, sentem no dia a dia pode aquecer a disputa presidencial nas urnas. Isso porque o embate deve ser entre o candidato kirchnerista, o atual governador da província de Buenos Aires, Daniel Scioli (Frente para a Vitória), apoiado por Cristina, e o líder oposicionista Mauricio Macri, do partido de centro-direita Proposta Republicana (PRO).
Antes disso, são necessárias as eleições primárias, em 9 de agosto, quando de fato será decidido o candidato de cada partido ou aliança política para disputar o comando do governo federal. Depois, em outubro, com suas cédulas de papel, os argentinos darão o veredicto sobre o futuro do país.
VERIFICAÇÃO DE DADOS
A incerteza que paira sobre as informações oficiais argentinas foi o combustível para uma iniciativa surgida em 2010. Um grupo se reuniu e criou o Chequeado.com, um site que se dispõe a checar a veracidade dos dados e discursos governistas.
Diretora-executiva do projeto atualmente, a jornalista e advogada Laura Zommer diz que a intenção é elevar a qualidade da informação para melhorar o debate público sobre os mais diversos assuntos, de violência à educação.
“Não temos dados suficientes que possamos confiar, então por que não aplicar um método para verificar se essas informações são mesmo verdadeiras? Foi assim que surgiu o Chequeado. Na época, só havia iniciativas parecidas nos Estados Unidos, Inglaterra e França”, conta.
Durante os cinco anos de produção o site já soma mais de 13 mil postagens, segundo a diretora. As checagens vão de frases de ministros à tradução em tempo real de pronunciamento da presidente.
“Fazemos uma análise qualificada. Cruzamos jornalismo de dados, buscamos as fontes e contamos com opiniões de profissionais qualificados, levando em conta todos os interesses, contextos e comparações do que foi dito”, explica Laura.
Os discursos podem ser considerados verdadeiros, falsos ou um dos dois com ressalvas, explicando o motivo. Mas o dispositivo que dá à população uma ferramenta para estar mais atenta ao que dizem seus representantes nem sempre foi visto com bons olhos pelos governantes. No início, foi alvo de diversas críticas, mas, ao mostrar-se relevante e confiável, o Chequeado dobrou sua audiência, ampliou seu alcance e passou a receber dos órgãos oficiais argumentos sobre o que foi dito. Para isso, o site dá entre 24h e 48h para que uma resposta seja enviada.
Laura Zommer é diretora-executiva do site e coordena o trabalho de checagens. Foto por Chequeado.com.
FINANCIAMENTO
Para tocar o projeto que conta com uma equipe de 15 pessoas, sendo cinco jornalistas e outros profissionais de ciência política e educação, além de voluntários, uma parceria com instituições internacionais, empresas, doações e até eventos para arrecadar fundos são necessários, de acordo com a diretora.
“Mas não há nenhum tipo de interferência no conteúdo. As instituições têm que saber que o que doam é pouco para elas, mas muito importante para o país. Dessa forma, temos autonomia e não sofremos pressão”.
No ano em que o site completa cinco anos na internet, a intenção é realizar a primeira pesquisa qualitativa para aferir o que pensam do Chequeado aqueles que estão sempre de olho nas checagens. “Temos para crescer um potencial incrível. Este ano, por exemplo, para ter espaço e pensarmos novas coisas criamos um laboratório de inovação do Chequeado para explorar essas ideias”.
RAIO X – Chequeado.com
- Equipe: 15 pessoas, sendo cinco jornalistas e profissionais de áreas afins, além de voluntários
- Parceiros: entre 30 e 50 instituições nacionais e internacionais
- Apesar de ser financiado, diz ser autônomo
- Checagens: mais de 1,3 mil notas publicadas
RHAYAN LEMES é jornalista e participa do “Jornalismo sem Fronteiras”, uma iniciativa da Link Consultoria que leva jornalistas e estudantes de comunicação a Buenos Aires para um mergulho de nove dias no trabalho de correspondente internacional.
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