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Fact-checking num país carente de informações confiáveis

Primeira iniciativa da América Latina, Chequeado eleva o nível do jornalismo de dados na Argentina

No final do primeiro trimestre de 2017, o presidente argentino Maurício Macri disparou que as obras públicas estavam batendo recorde histórico. A afirmação do presidente referia-se a obras de estradas, aeroportos, portos, ferrovias e o Metrobus na Província de Buenos Aires, além de obras de água, esgoto, habitação, gasodutos e linhas de energia. No mês passado, ao lançar o novo partido Unidade Cidadã, Cristina Kirchner alfinetou que, pela primeira vez em 20 anos. a YPF, a estatal de petróleo, teve seu primeiro resultado negativo. Mas o que estas declarações têm em comum além de, obviamente, terem sido proferidas pelas duas principais figuras políticas da Argentina atualmente? Elas passaram pelo sistema de checagem de dados (fact-checking) do Chequeado e, após levantamento minucioso, chegou-se à conclusão de que, enquanto a afirmação de Macri era falsa, a de Kirchner era enganosa.

Passava das 15 horas da última segunda-feira (10/07) quando chegamos ao sétimo andar do número 5869 da Avenida Córdoba. O prédio com instalações modernas, no estilo minimalista, contrasta com a maioria das construções portenhas. Quando o elevador espaçoso alcança o sétimo andar, somos recebidos por Ana Paula Valacco, responsável de comunicação e desenvolvimento do Chequeado, que nos introduziu a como o grupo de 18 pessoas realiza as checagens de dados do primeiro portal de fact-checking da Améria Latina: o chequeado.com.

Criado em outubro de 2010, mantido pela Fundação La Voz Pública e inspirado em portais como os estadunidenses factcheck.org e Politifact, no inglês Channel 4 News Fact Check e no blog Les décodeurs, do diário francês Le Monde, o Chequeado surgiu para suprir uma demanda de informações confiáveis sobre os principais temas da Argentina num momento em que tanto os dados oficiais quanto aqueles repetidos a exaustão pelos meios de comunicação tradicionais tinham pouca ou quase nenhuma credibilidade. Como exemplo, eles citam os dados de criminalidade, que não vinham sendo divulgados corretamente desde 2008. Logo após o surgimento do portal, pelo menos outras 11 iniciativas seguindo os parâmetros da Internacional Fact-checking Network foram aplicadas na América Latina, em nove países, incluindo Brasil [Lupa Aos fatos Truco], Colômbia, México, Uruguai, entre outros.

Um bom exemplo do que essa galera produz pode ser observado no projeto “Chequeado Ao Vivo”, que sempre na primeira sessão legislativa do ano, em 1º de março, reúne estudantes voluntários e profissionais para checagem da fala de cada um dos deputados na abertura dos trabalhos legislativos, incluindo também o primeiro discurso oficial do presidente da república.

Além dos discursos, a matéria-prima do Chequeado inclui dados divulgados pelos governos, por instituições independentes, organismos de controle e reportagens jornalísticas. O trabalho trata de buscar em fontes primárias e secundárias a confirmação das informações lançadas ao público. O fluxo de checagem gera conteúdo praticamente diário, seguindo métricas de verificação da área de tecnologia e de inovação que apontam os melhores horários e formas de se divulgar cada tipo de conteúdo. As formas de divulgar os “chequeados” incluem ainda gifs animados, vídeos, gráficos, entre outros.

A contra-checagem dos dados pode gerar até nove categorias diferentes de conclusões: VERDADERO, VERDADERO +, PERO, DISCUTIBLE, APRESURADO, EXAGERADO, ENGAÑOSO,  INSOSTENIBLE e FALSO.

  1. VERDADERO A informação demonstra ser verdadeira ao ser confirmada com as fontes e dados mais sérios e confiáveis.
  2. VERDADERO + Neste caso as afirmações apoiadas em dados não apenas ratificam a verdade como reforçam o que foi declarado.
  3. VERDADERO, PERO… Informação consistente com os dados disponíveis, mas que acaba omitindo elementos do tema em seu contexto.
  4. DISCUTIBLE Não está certo que a informação é precisa. Conclusão que dependeria de outras análises.
  5. APRESURADO A informação poderia até ser verdadeira, mas é resultado de uma projeção e não de um dado objetivo da realidade.
  6. EXAGERADO A afirmação não está estritamente certa, mas está de acordo com o conceito ou tendências que circulam o assunto.
  7. ENGAÑOSO Informação que até pode coincidir parcialmente com alguns dados, mas acabou sendo manipulada intencionalmente ou não para gerar uma mensagem mais particular.
  8. INSOSTENIBLE Informação que surge com falta de sustentação de dados, com graves erros metodológicos ou impossível de se verificar.
  9. FALSO Informação falsa ao ser comparada com fontes e dados mais sérios e confiáveis.

Financiamento transparente

A alma da redação do Chequeado se concentra, principalmente, na figura de sua presidente executiva, a jornalista e advogada Laura Zommer, que também é pioneira ao introduzir duas disciplinas de checagem de dados na Universidade de Buenos Aires. Rápida e objetiva, como quem ministra a mesma aula há muito, Laura tem na ponta da língua a melhor resposta sobre como financiar o meio de produção de conteúdo sem que a área editorial seja influenciada pelo setor comercial: “As redações tradicionais separam setores de redação e comercial, as tornam algo muito distante. Aqui, nós temos nossos modelos de financiamento que em nada interferem na questão editorial. E todos sabem que precisamos de dinheiro para continuar trabalhando. Fazemos questão de que todos saibam de onde ele vem, e como vem”, explica.

O portal tem basicamente quatro formas de arrecadação. A primeira é a doação direta dos cidadãos que fazem aporte a partir de 100 pesos [R$ 20]; apoio de instituições e empresas preocupadas com a difusão da transparência dos governos;  atividades próprias e cooperações internacionais. Ainda há projetos especiais encomendados por empresas e setores. Quando isso ocorre, lembra Laura, o Chequeado faz questão de informar ao público quem financiou o trabalho.

Além da cátedra na universidade de jornalismo, o Chequeado também se preocupa com a formação de cidadãos preparados para lidar com o mundo pós-verdade (ou política pós-factual), desenvolvendo diversos projetos de educação. Os cursos profissionalizantes, voltados principalmente para aqueles que já atuam, é um dos complementos do orçamento da organização. Já os projetos para a educação infantil tem como objetivo resultados a longo prazo, na formação de leitores mais críticos e cidadãos mais conscientes com o que políticos, instituições e jornais divulgam.

Em 2016, pelo menos 1.200 crianças e adolescentes na Argentina passaram pelo curso da organização em atividades de acordo com os parâmetros estabelecidos pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) para a educação. Em 2017, a previsão é atingir um público de até 5.ooo estudantes, o que pode também confirmar a execução do projeto na África do Sul.

Para Laura, a forma como a imprensa tradicional está acostumada a fazer jornalismo é imprecisa e não é capaz de oferecer os subsídios necessários que um cidadão precisa para se manter bem informado. Mas adverte que o Chequedo, por exemplo, não é um meio de comunicação primário, onde o público se inteira dos últimos acontecimentos.

“As pessoas nunca vão acessar o Chequeado para se informar sobre determinados temas, mas sim para entender e compreender os assuntos que estão publicados”, explica. A escolha dos temas que o portal trabalha é elencada entre os principais assuntos de interesse público verificados na imprensa, no governo ou nas manifestações de interesses civis coletivos. Mesmo assim, pelo menos uma vez por semana, a redação trabalha um tema escolhido pelos leitores. “Às vezes são escolhidos mais de um tema que chega para a gente, mas pelo menos um que vem de fora da redação nós apuramos por aqui”, explica Laura.

Entre essas checagens estão, por exemplo, a verificação de mitos populares e fraudes, como a verificação de que “comer cenoura melhora visão” – Para não falarmos de questões religiosas ou político-ideológicas. No caso da cenoura, o site chegou a conclusão que não existem pesquisas capazes de comprovarem o ditado popular.

Sem concorrência entre veículos

De acordo com Laura, esta forma de elaboração do produto editorial mais horizontalizado tanto com o público como com a própria redação coloca os meios de comunicação em um espaço de não-concorrência. Uma vez que seus compromissos transcendem interesses comerciais, que são muitas vezes usados de formas subjetivas nas pautas jornalísticas dos meios mais tradicionais. É o que fazem muitos jornais que, para atrair mais publicidade, trabalham os temas de acordo com o anunciante.

“Eu diria que não há concorrência, pelo menos nos meios de fact-checking. Existe tanta informação para verificar e os políticos continuam contando tantas mentiras que não falta matéria prima”, dispara.

Por fim, ela lembra que, embora tendo o Chequeado existindo ou não na Argentina – Laura é daquelas que que parece crer que a utopia deve ser perseguida pelo simples motivo de nos manter caminhando no sentido certo –, o Congresso Nacional deve votar em breve sua própria Lei de Acesso à Informação, como já existe no Brasil. No entanto, ela não espera que de uma hora para a outra o mundo ou os políticos mudem de forma tão rápida. “Nós estamos fortalecendo a democracia e esperamos que sim, que isso resulte em mudanças profundas, mas quando isso acontecer eu não sei se estarei viva para ver”.

 

Diário Porteño – Renata Cerdeiras especial para Jornalismo Sem Fronteiras

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