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Os oitenta de Quino

Que me desculpem os estereotipadores de plantão, mas não é apenas no tango, na carne e no doce de leite que a Argentina se destaca. Junto com a Bélgica, país de Tintim e dos Smurfs, e o Estados Unidos, onde surgiram grandes heróis como o Homem-aranha, Capitão América, os X-Men e muitos outros, ela é também uma referência quando o assunto são histórias em quadrinhos.

 

Confira a  matéria produzida por nossas correspondentes Bruna Bravo, Beatriz Avila e Maria Cortez durante o Programa Jornalismo sem Fronteiras, em Buenos Aires.

Em suas terras, formaram-se grandes cartunistas como Carlos Garaycochea, García Ferré, Sábat e Mordillo. No entanto, ainda que a produção argentina seja em sua maioria de excelente qualidade, foi a Mafalda de Quino que conquistou o mundo.

Joaquin Salvador Lavado, o Quino, completa 80 anos neste julho. Em suas obras, constam os mais diversos temas, mas há sempre um denominador comum : o tom crítico, o humor cuja matéria prima é a miséria humana. Por meio de desenhos de qualidade, Quino procura um novo olhar sobre o mundo e o interroga, com uma sensibilidade que extrapola o contexto em que está inserido. Ainda que seu trabalho reflita as ideias, os valores e as preocupações de sua época, não se pode ter um olhar determinista sobre sua obra: afinal é justo o fato de ser universal e sua atemporalidade que o fazem um gênio observador contemporâneo.

De seus desenhos, o mais conhecido é Mafalda, a baixinha que misturava visão de mundo da infância com crítica adulta afiada. Porém, de 50 anos dedicados a quadrinhos pelo argentino, a menina ocupou apenas 10. Obteve tanto sucesso que hoje é um símbolo de seu país, com reconhecimento tanto local quanto internacional. Além da pequena, as histórias trazem outros personagens, como amigos e familiares. Dessa forma, constróem um contexto infantil para problemas adultos, o que contribui ainda mais para o humor, pois é a partir do inesperado e do paradoxo que o cômico se constrói.

Vida e carreira

Nascido em Mendonça, Argentina, em 17 de julho de 1932, Joaquín Salvador Lavado começou a se interessar por desenho através de seu tio – também Joaquín – que entretia os sobrinhos com suas artes. O caçula de três irmãos logo se familiarizou com ilustrações de revistas que o tio comprava, como a Life, e encantava-se com as imagens do cinema de John Ford. Enfrentou duras perdas na adolescência: a mae aos treze e o pai três anos mais tarde.

Mesmo com tanto sofrimento, apostou no humor como pano de fundo para seus desenhos. Começou – e logo abandonou, em seu segundo ano da graduação – a faculdade de Bellas Artes de Mendonça. Decidido a investir na carreira de desenhista de tirinhas, conseguiu vender seu primeiro desenho em 1950, na revista semanal Esto Es. Em 1954, morou em Buenos Aires em condições financeiras complicadas, contribuindo para publicações como Usted, Che e Panorama para se sustentar.

Em 1964, consolidado já há dez anos como cartunista, Quino publica aquilo que lhe traria o grande sucesso e prestígio. Mafalda apareceu pela primeira vez em Gregorio, suplemento da revista Leoplán. Ao fim de setembro, o semanal Primeira Plana começa a publicar a personagem regularmente. O sucesso da pequena foi tanto que, já em 1966, Jorge Álvarez Editor lança o que seria o primeiro livro de coletâneas de seus quadrinhos. A edição de cinco mil exemplares esgotou-se em dois dias, o que levou, no ano seguinte, à compilação do segundo livro. Antes do fim da década, o livro de Mafalda é publicado pela primeira vez no exterior, com apresentação escrita por Umberto Eco.

 

O teor do humor crítico da pequena irreverente, agregado a seu sucesso, incomodou. O lançamento da personagem e de suas histórias no exterior, por exemplo, nao foi sempre visto com bons olhos : o primeiro livro na Espanha foi censurado pelo regime franquista, obrigando-se a colocar uma capa que continha uma restrição de apenas adultos.

Em 1973, Quino se despede do Siete Dias e de Mafalda, focando em outras histórias e personagens. Seu engajamento político e social, no entanto, nao ficou em segundo plano, perturbando a ditadura implantada em 1976 na Argentina. O departamento onde trabalhava, na época, foi invadido por um grupo armado, coincidentemente após recusar-se a fazer uma ilustração a José López Rega, ministro na época. Sentindo o perigo da repressão, mudou-se para Milao com a esposa.

Ganhou prêmios importantes durante sua carreira, como o Troféu Palma de Oro em 1978 e, em 1982, o titulo de Desenhista do Ano e o Premio Konex de Platino Artes Visuais de Humor Grafico. Como humanitario, tambem foi reconhecido : ilustrou a Declaraçao de Direitos das Crianças da UNICEF em 1977 e recebeu o premio B’nai B’rith Direitos Humanos.

O Instituto Cubano de Arte e Industria Cinematograficos realizou com Juan Padron, amigo pessoal de Quino, curtas-metragens baseadas em suas paginas de humor, os chamados Quinoscopios. Mais tarde, Mafalda também teve suas animacoes pelo mesmo órgão, que produziu 104 episódios de um minuto de duração cada.

De quinze anos para cá, o artista teve alguns de seus livros relançados (A mi no me grite e Mundo Quino foram alguns deles), grandes feiras e exposições de suas obras ao redor do mundo. A decisão de ter parado de desenhar, em 2009, nao diminuiu seu prestígio na comunidade internacional. Seu legado o faz um dos artistas e críticos sociais mais importantes e atuais : na técnica, na escolha de temas, na sensibilidade do olhar. Joaquín lavado não mudou a sociedade e, mas inseriu em seus rabiscos seu ver analítico, mudando o olhar dos espectadores sobre o meio e o cotidiano.

Mafalda, a criança que deu voz a gerações

Desenhada pela primeira vez para uma propaganda publicitária que não vingou, a grande personagem de Quino ficou dois anos guardada na gaveta até ser publicada em setembro de 1964. Os quadrinhos de Mafalda foram veiculados ao longo dos quase dez anos de dedicação do cartunista à sua criação. Nesse tempo, fazem parte do cenário histórico, portanto, a ditadura militar argentina e o contexto sociopolítico decorrente do período da Guerra Fria.

A menina de seis anos e laço no cabelo aborda, com a ingenuidade da criança que é, questões de injustiça social, expressando o que muitos gostariam de dizer em época de repressão e guerra. O interesse e a curiosidade fazem com que as observações da menina-filósofa revelem uma visão da sociedade que surpreende o mundo adulto pela inocência infantil e simplicidade com que se dá a crítica. Afinal, por que complicamos as coisas?

Preocupada com a humanidade, crente de que o mundo pode ser melhor e a fim de alcançar a paz mundial, Mafalda opunha-se ao imperialismo, à corrupção, aos governos militares, às guerras. Questionava temas como o papel da mulher na sociedade, as funções da ONU, os moldes capitalistas de produção e consumo, a liquidez de conceitos e práticas, como a democracia. Revoltava-se contra a pobreza, a fome e outros males sociais.

 

Quino consegue expor suas opiniões usando a voz de uma menina comum dos anos 60 e 70 que não gosta de sopa e adora os Beatles. São em situações do dia-a-dia de uma criança (ouvindo à rádio, assistindo à televisão, indo para a escola, brincando no bairro com os amigos), que a inteligência e ironia da personagem transformam a complexidade humana e social em algo óbvio.

As tirinhas também contam com outras personagens, compondo um mosaico de personalidades, que às vezes divergem, fazendo surgir as reflexões e críticas. No ambiente familiar onde cresce a pequena notável, a mãe de Mafalda é uma dona de casa e ajuda sua filha com aflições que tem sobre o mundo. O pai trabalha e quando está em casa sua maior diversão é cuidar das plantas. Os questionamentos de sua filha, muitas vezes, o entretêm. O último membro a chegar à família é Guille, que tem a mais pura inocência por ser um bebê e estar experimentando o mundo pela primeira vez.

Felipe: dos amigos de Mafalda, é o mais próximo e, ao contrário dela, não tem muita iniciativa e atitude, preferindo viver no mundo da lua.

Manolito: é o amigo capitalista e prático da turma que quer ser rico e desde já ajuda o seu pai no armazém; como um bom pragmático, não se interessa por filosofia, política nem por fantasias.

Susanita: também é conservadora; caminha para o lado oposto de qualquer movimento feminista e seu maior desejo é ser dona de casa, mulher submissa e mãe.

Miguelito: o mais novo dos amigos de Mafalda, possui o autocentrismo de uma criança, mas tenta entender o mundo, mesmo que refletindo sobre assuntos de menor relevância.

Libertad: a preferida de Quino e última personagem a entrar para turma é representante radical dos ideais políticos socialistas. Conversa com Mafalda sobre política, porém, as opiniões diferem: a última é mais realista, em contraposição à utópica Liberdade.

Nao importa o país, a idade ou a cultura: Mafalda é quase uma unanimidade quando se trata de quadrinhos de qualidade. Em San Telmo, bairro onde Quino morava na época em que desenhou suas historias, e no qual as contextualizou, é possivel ver dezenas de turistas todos os dias. A regiao é o bairro mais antigo da capital portenha e foi o reduto da classe alta da cidade em meados do século XIX. Hoje, reune diversos artistas e intelectuais, cafés, antiquarios e galerias de arte. É andando entre as casas de arquitetura com clara inspiraçao francesa, as ruas de paralelepipedo e os postes que ainda abrigam estruturas de lampiao que encontramos Mafalda, pensando no mundo. Na calçada em frente ao antigo edificio do cartunista, mais precisamente na esquina das ruas Chile com Defensa, há um banco com uma estátua da menina.

 

Em homenagem ao Quino, a obra do artista argentino Pablo Irrgang foi instalada em agosto de 2009. Fica no mesmo quarterão do número 371 da Chile, onde morou Quino, como indica uma placa cedida pela administração da cidade. É preciso observar, porém, que tudo isto foi instalado devido a uma iniciativa popular : a partir de blogs na internet, um movimento reinvidicava que a casa de Mafalda fosse reconhecida como patrimônio cultural da cidade. Dario Gallo, jornalista, foi um dos líderes desta empreitada. A partir de informações em uma matéria feita por estudantes de jornalismo, Gallo descobriu a localização do edificio e buscou assinaturas para torná-lo algo de interesse municipal. « A instalação de uma escultura de Mafalda sentada nessa esquina de San Telmo terminou por delinear um centro de atração turística em um lugar onde anos antes não havia nenhum registro », diz. E complementa : « Mafalda é parte da cultura argentina » .

Em poucas horas no bairro, ja é possivel ter um panorama bem amplo dos fãs da personagem. Alicia, uma senhora, é uma colecionadora de Mafalda e lê suas histórias desde os 15 anos de idade. Vê a menina como um simbolo de irreverencia e transgressão, e acredita que os temas de que trata são universais, pois vão servir para todas as épocas : são uma critica à sociedade, ao consumo e à indiferença. Ao mesmo tempo, é possivel encontrar pessoas mais jovens, como o casal Mirian e Nestro, os quais acreditam que os quadrinhos de Quino trazem uma problemática econômica do mundo e são conhecidos por todas as idades. E a maior prova de que Mafalda é uma referencia internacional são as nacionalidades dos turistas : além de Mirian e Nestro, do Uruguai, pode-se citar também o casal suiço Felipe e Ofelia. Para estes, a pequena representa a Argentina e sua politica. Porém, observam que estas histórias não são tão comuns na Suíça quanto na America do Sul, já que a Europa possui uma forte influência dos pólos belga e francês de produção de histórias em quadrinhos.

Panorama do Humor Argentino

No inicio do século XIX, os primeiros quadrinhos e caricaturas focavam em sátiras sociais da classe mais alta e consumidas pela mesma, em um exercício de rir de si próprio. No entanto, com as transformações políticas na Argentina – como a Independência e, consequentemente, o processo de formação da nação – as ilustrações ganham um espaço de opinião e crítica política.

Essa visão do riso como transformador do panorama socio-politico foi desenvolvendo-se ao longo do século XX. « O humor gráfico sempre teve um lugar destacado nesse século » assegura Dario Gallo. Caloi, Crist e o proprio Quino são apenas alguns dos que se destacaram no cenário argentino. Fica a dúvida de como o humor se desenvolverá agora.

Para Quino, o humor passa por dificuldades, já que é fadado a repetir as mesmas piadas sobre os mesmo erros da humanidade. Em entrevista concedida à Siete Dias, revista de domingo do jornal portenho Tiempo Argentino, na última semana, o desenhista afirmou que, apesar de ficar feliz com o reconhecimento que tem e que perpassa pelas gerações, a atemporalidade pode denunciar a repetição e nao superação de mazelas pela sociedade. « Mafalda continua dizendo as mesmas coisas e têm sentido porque o ser humano segue cometendo as mesmas estupidez de sempre » finaliza, em tom pessimista.

 

Em tempos tão instáveis quanto os de nosso século, é complicado determinar os rumos que os quadrinhos e as tirinhas tomarão. No entanto, algo é certo : um contexto tão paradoxal como o atual é fonte fértil para novos pensadores, o que torna possivel que apareçam produções tao geniais quanto as de Quino. Por isso, ainda que por outros meios, pode-se dizer que as risadas estarão garantidas e, quem sabe, continuarão a proporcionar uma reflexão crítica sobre o mundo.

Museu do Humor

Carlos Garaycochea, Carlos Nine, Quino, o Ministro da Cultura de Buenos Aires Hernan Lombardi e outros fundaram em junho deste ano o Museu do Humor. O objetivo é criar uma instituição cultural para preservar o patrimônio e expor os novos talentos do humor das tirinhas. O museu é organizado em dois andares : no subsolo está o acervo permanente, que é uma apresentação cronológica de cartunistas argentinos e estrangeiros, enquanto no térreo serão organizadas mostras temporárias dos artistas mais reconhecidos.

Está localizado no Edificio de la Munich, em Puerto Madero, que foi construído em 1927. Primeiramente funcionava como uma cervejaria e era frequentada por políticos e intelectuais da época. Anos mais tarde, tornou-se sede da administração geral de museus da cidade.

Por: Bruna Bravo, Beatriz Avila e Maria Cortez

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