Sábado também é dia de IX Jornalismo sem Fronteiras. O compromisso diário estava marcado para…
A arte de contar histórias
Falamos um pouco no último diário sobre a importância da história e das pessoas que a vivenciam e a mantém viva, e o dia de hoje só reforçou essa convicção, assim como o papel fundamental dos jornalistas como contadores dessas histórias.
Mais uma vez, o dia começou cedo e não parou mais, cheio de atividades e surpresas até bem depois da meia noite. Foi correr para tomar café e logo já estávamos todos reunidos para conversar com Lisandra Paraguassu, hoje repórter sênior de política da agência de notícias Reuters, mas com uma trajetória que já vem de longe: antes de entrar no meio político, durante 13 anos trabalhou para o Estadão cobrindo pautas sociais e de direitos humanos, morou nos Estados Unidos, esteve nas eleições do Paraguai, na China, no Haiti, Cuba e Coreia do Norte e foi a primeira e praticamente única jornalista brasileira a estar presente no terremoto do Nepal.
Ao nos depararmos com uma pessoa com um currículo desses, dá até um pouco de medo, que foi logo dissipado pelas histórias de Lisandra. A conversa que era para ter durado uma hora, durou duas, e poderia ter se estendido mais se a jornalista não tivesse um compromisso, mas mesmo nesse tempo, ela nos trouxe dicas valiosas.
Ela nos contou, por exemplo, que a experiência de ter trabalhado na área social trouxe um diferencial no seu olhar e na sua cobertura quando mudou de lado e passou a escrever sobre aqueles que criam as leis, e não aqueles que elas afetam, pois muitos repórteres de Brasília nunca tiveram essa experiência de ir para as ruas e falar com as pessoas, fechados que estão nas coberturas dos gabinetes, e saber como as políticas afetam a população é fundamental para entender o peso do que se noticia.
Para Lisandra, toda experiência conta. Segundo ela “Toda informação que você acumula e guarda é útil. Mesmo que não consiga usar no texto do dia a dia, uma hora vai ser útil”. Morar ou passar um tempo fora também é algo fundamental, para que possamos ver outros lugares, aprender outras culturas, a maneira como as pessoas pensam, a visão de mundo delas e, assim, aprendermos a lidar melhor com essas diferenças.
No mundo político, infelizmente, há poucos interessados em contar essas histórias, já que o foco do jornalismo investigativo aqui é o jornalismo de denúncia. E não é para menos, na política, é necessário desconfiar de todas as informações que se recebe, já que “todos mentem, e usam os jornalistas para tentar vender a informação que eles querem passar”. Por aqui, se uma fonte te der uma dica muito boa, é para se desconfiar e conferir com outras pessoas, pois é quase certeza que há um interesse próprio. Na Reuters, as fontes são classificadas em níveis, de mais a menos confiáveis, e quanto menor a confiança, mais é necessário checar, além do editor precisar aprovar a fonte para a matéria, por não poderem correr o risco de publicar algo falso.
“Tem fontes que são minhas, mas são de Deus e o mundo, porque gostam de se sentir importantes, essas são as que menos se dá para confiar. Construir fontes demanda muito tempo, comprometimento, respeito e confiança, que você vai ganhando ao tratar bem a informação que recebe em suas matérias. Se tiver dúvidas, pergunte, não importa o quão estúpida seja a pergunta, porque é melhor do que escrever algo errado e ser desacreditado”.
A dica para navegar por entre as mil declarações e informações e achar uma matéria de peso é ler nas entrelinhas, prestar atenção aos detalhes que podem ser explorados melhor. E foi isso que fez a equipe do Congresso em Foco, uma das poucas equipes voltadas exclusivamente para o jornalismo investigativo e apartidário, com quem tivemos a chance de conversar logo em seguida, em sua própria redação.
O veículo surgiu com tudo em 2004 ao denunciar o esquema da “farra das passagens” dos deputados, onde eles usavam a cota (absurdamente alta) para viagens oficiais que possuíam para levar familiares, amigos e até artistas em viagens de férias. Quem nos recebeu foi o editor-executivo do site, Edson Sardinha, que contou que foi um trabalho longo e minucioso de jornalismo de dados. Naquela época, ainda não havia a lei de acesso à informação, então eles possuíam um dossiê gigante, com uma quantidade imensa de dados – os gastos de viagens de cada parlamentar, datas, motivos, companhias aéreas, quem foram os beneficiários, etc – e foram fazendo as comparações e checagens à mão.
“O trabalho mais difícil foi tentar descobrir quem eram aqueles personagens citados nos documentos e então ir atrás deles, foi realmente um trabalho de mineração de dados, então nós saímos à frente de qualquer outro veículo, porque foi uma ideia nossa e tínhamos muito material. A melhor sensação foi quando eles diminuíram de fato as cotas por causa da denúncia, foi a primeira vez que nos sentimos influenciando de fato na realidade. Ver esse retorno é tudo, é isso que faz valer a pena ser jornalistas”.
O mesmo aconteceu, por exemplo, em sua matéria sobre os super salários em 2010, ou com o acompanhamento de quais políticos e candidatos estão enfrentando julgamentos enquanto exercem seus cargos ou ao se candidatar, que acabou levando à lei da Ficha Limpa. A grande sacada é ver por trás daquilo que está na frente de todo o mundo e contar essa história.
Saímos da redação deslumbrados pela fórmula aparentemente simples, mas de grande dificuldade e que traz um impacto tão importante nas vidas das pessoas, e o dia não estava nem perto de acabar. Voltamos para o hotel correndo e arrumamos tudo para a chegada de Elisa Espósito, ex-participante do Jornalismo & Poder e que hoje trabalha como estagiária da ONU. Enquanto esperávamos, mais uma boa notícia: Murilo Salviano, da GloboNews, poderia falar com a gente naquele mesmo dia, mas só depois das 22h, pode ser? Como vida de jornalista não tem horário e não podemos desperdiçar nenhuma oportunidade, a resposta foi unânime: claro que sim. Mas calma, que ainda tinhamos muita coisa antes disso.
Elisa nos trouxe uma visão diferente, não só de quem trabalha com o outro lado da política – os direitos humanos e aqueles afetados por ela – mas também de um órgão que se relaciona diariamente com a política brasileira, sem fazer realmente parte dela. “Para eles, a questão do diálogo e do compromisso é muito importante. Aqui, o público e o privado se misturam e é importante saber como balancear esse universo”.
Ela trabalha na UNFPA, o Fundo de População das Nações Unidas, que cria ações, relatórios e pesquisas para assegurar os direitos humanos dos jovens, aqueles que vão dos 15 aos 29 anos. Para ela, assim como para Lisandra, os jornalistas pecam na divulgação das ações de direitos humanos e indica que todas as sessões do congresso são transcritas em relatórios que ficam disponíveis no site, mas que seria importante olhar esses relatórios e trazer os personagens que ele afeta, não apenas os dados do release, e nunca desistir, mesmo se você não ache alguém disposto a comprar sua pauta imediatamente.
Elisa não conversou com Lisandra conosco, não foi até o Congresso em Foco ou ficou para a conversa com Murilo, nenhum dos nossos entrevistados do dia se encontraram, mas seus discursos, sim. A necessidade de irmos a fundo atrás da história, de buscarmos os personagens e não apenas os números, de contarmos o lado das pessoas atingidas pelo poder e não apenas do poder em sí.
Murilo fechou essa reflexão com chave de ouro ao nos lembrar de que não basta apenas contar as histórias, mas fazer isso bem, de forma que atraia o público e os conecte com o que estamos noticiando. “O que as pessoas querem ver é o caldo, você precisa construir o clima do lugar, o que você está vendo, o que está ouvindo, como é aquele ambiente, para que a pessoa realmente se sinta naquele lugar com você”, diz ele.
Isso vem se tornado tão importante, que os jornais até começaram a romper com aquele padrão de reportagem em vídeo que arrumava luz, cenário, roupa e o entrevistado, deixando o ambiente completamente diferente. Agora, se a casa da pessoa não tem luz, a entrevista é feita com a luz natural, se a casa está bagunçada, vai ficar bagunçada, para mostrar de verdade a realidade daquelas pessoas, assumir os personagens.
Até mesmo na política, Murilo acredita que o grande lance de cobrir o Congresso é contar uma história, falar dos bastidores, dos jogos políticos. Grande parte do jogo do impeachment, segundo ele, foi jogado do lado de fora, nas conversas entre políticos, promessas e trocas de favores, e era isso que ele buscava passar em suas coberturas.
E para nós que estamos apenas começando, ele dá uma dica valiosa: “Minha estratégia no começo era falar com peixe pequeno, porque os grandes não iam falar comigo, mas nenhum peixe grande faz reunião sozinho. Depois os outros começaram a ficar curiosos, a querer saber como eu havia conseguido a informação – óbvio que eu não ia revelar fonte – então eu falava “Se você não fala comigo, alguém fala, porque a gente não marca um café e você mesmo me conta da próxima vez?” e assim eu ia construindo minhas fontes”.
Sobre ser repórter ao vivo, não há fórmula, porque cada vivo é um vivo, a vida não pode ser prevista. Só nos instrui a agir com naturalidade, ter em mente uma linha de raciocínio e não um texto exato, para poder mudar a ordem da informação e não deixar anda de fora, saber bem sobre o assunto que estão falando e sempre ter em mente quem é o público, pois ele vai ditar a forma como você irá falar.
Já ouvimos isso antes e ouvimos de novo, trabalho de jornalista não tem hora, é preciso ralar muito e ter muita responsabilidade e paciência. E Murilo ainda diz mais, que você precisa sempre saber o que você quer e ir trabalhando para que isso aconteça, construindo sua carreira em torno disso. Ele sabia que queria estudar fora, então estudou francês apenas para participar do programa de intercâmbio da UNB. Ele sabia que queria trabalhar na Globo então convenceu os responsáveis pela área de estágio na França a deixá-lo estagiar em Londres, onde havia uma emissora da Globo. Assim Murilo foi cavando seu espaço, mas avisa: “É impossível tentar seguir o mesmo caminho que outra pessoa e alcançar o mesmo resultado, porque são situações diferentes, faça seu próprio caminho, se esforce e faça sempre seu trabalho com verdade, porque você quer e não pelos desejos de outros”.
O brilho nos olhos contagia. A conversa foi até bem mais do que meia noite, mas no final ninguém estava cansado, continuamos por ali, batendo papo, querendo saber sempre mais. Da mesma forma que Murilo construiu sua história, vamos construir as nossas, para que possamos contar as histórias dos outros.
Amanhã voltamos com mais histórias para contar. Até mais!
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