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Unanimidade no Congresso em Buenos Aires referente à doação de órgãos

[:pb]

Lei Justina, aprovada na Argentina, altera medidas na doação de órgãos e ainda é uma realidade distante para o Brasil, segundo médica.

MARCELA TEIXEIRA

DE BUENOS AIRES

Não deu tempo. Justina Lo Cane, 12 anos, faleceu em novembro de 2017 enquanto esperava na fila por um coração. Tinha uma doença cardíaca congênita que havia sido descoberta quando a menina tinha, apenas, um ano e meio de idade. Se manteve saudável por muito tempo através de medicação e tratamento. Porém, na metade do ano passado, começou a sentir fortes dores e, então, foi internada no hospital Fundação Favaloro, Buenos Aires, com a necessidade de um transplante urgente. Mas, não deu tempo. Ou havia pacientes mais graves ou, em outros casos, ocorria à falta de compatibilidade. Assim que a argentina entrou na fila de espera, pediu à sua família para iniciar uma campanha virtual com o objetivo de ampliar a conscientização sobre a importância da doação de órgãos. A ação viralizou nas redes sociais com milhares de posts com as hashtags #MultiplicateX7 e #LaCampañadeJustina. O efeito, nos argentinos, foi imediato. O número aumentou de 80 registrados por dia para 330, de março a junho. Na semana posterior a sua morte, houveram mais doadores que em todo ano de 2016, aproximadamente 48 mil pessoas em sete dias. Um novo recorde na história de doação de órgãos na Argentina.

O conceito por trás de “#MultiplicateX7 é que, se você é um doador, sua vida pode ser multiplicada por sete. As hashtags viralizaram nas redes socias, confira parte da votação no congresso em Buenos Aires.

Hospital Fundación Favaloro, onde Justina esperava pelo seu coração.

Implicações da atualização na lei

No início do mês de julho, foi aprovada a lei Justina, modificando o regime de doação de órgãos no país. A iniciativa inspirada no caso de Lo Cane, votada por unanimidade na Câmara dos Deputados e no Senado, estabelece que todos os cidadãos maiores de idade serão doadores, a menos que expressem a sua vontade de não ser. Essa mudança na lei é decisiva pois implica que os parentes não serão mais responsáveis por autorizar a doação. “A retirada de órgãos e/ou tecidos pode ser feita a qualquer pessoa fisicamente capaz com mais de 18 anos de idade que não tenha deixado um registro expresso de oposição à extração da mesma após sua morte”, afirma o projeto. Trabalhado com a INCUCAI (El Instituto Nacional Central Único Coordinador de Ablación e Implante), a lei foi promovida pelo senador do partido Cambiemos, Juan Carlos Marino. A sessão, na cidade portenha, terminou com todos os deputados aplaudindo em pé e a família de Justina, seus pais, avós e irmãos, emocionados com a decisão.
A nova lei foi votada por unanimidade no Congresso Nacional, localizado em Buenos Aires.

Hoje, na Argentina, mais de 11 mil pessoas estão na fila para serem transplantadas, segundo o INCUCAI. A maioria necessita de um rim, depois córneas e, então, fígado. Em 2017, o número de doações cresceu 15,3%. No mesmo ano, mais de 3 milhões de pessoas manifestaram o seu desejo de doar. Entretanto, o oposto também aconteceu. Mais de um milhão falaram “não”, Buenos Aires, Córdoba, Santa Fé, Salta e Mendonza são as cidades onde mais pessoas não optaram pela doação. A falta de doadores é um problema mundial e, na Argentina, 799 pacientes morreram à espera de um transplante no ano passado. Onde, a cada 10 minutos, uma pessoa entra na fila. A ONG Fundación Continuar Vidas nasceu com o objetivo de fundar uma instituição buscando estrutura para conseguir acompanhar uma família na hora de receber um diagnóstico que não é positivo. Há mais de cinco anos, funciona como um grupo de apoio dedicado a promover, educar e informar sobre a importância da doação de órgãos, medula óssea e sangue. Oferecendo, dessa maneira, assistência às famílias que estejam na fila ou num tratamento prolongado. A secretária geral da ONG, Lúcia Kwist, demonstra preocupação quanto à popularidade da lei Justina: “Neste momento, está se falando mais um pouco sobre a doação de órgãos. Mas, como tudo, com o tempo se diluí. Esse não é um trabalho de uma vez, é um trabalho para a vida. Por isso, o que eu gostaria é que as pessoas entendessem que doar é continuar a vida de mais alguém”.

Realidade brasileira
 
Na América do Sul, a Argentina está em terceiro lugar em relação ao número de doadores. Atrás do Uruguai e do Brasil. Em Curitiba, no Dia Nacional da Doação de Órgãos, em 2016, Isabela Zucoloto, com 19 anos na época, passou por um transplante. Estranhou uma bola que surgiu em sua barriga e o cansaço constante. Quando ela decidiu ir ao médico, lhe receitaram antidepressivos por acreditarem se tratar, apenas, de muito estresse. Seu pai, por já ter trabalhado na área, nunca lhe deixou toma-los. Insistiu novamente e, numa outra consulta, sem pedir nenhum exame, diagnosticaram hérnia. Nesse meio tempo, ao caminho da faculdade, sentiu fortes dores abdominais. Isabela conta que as dores assemelhavam-se a cólicas menstruais, por esse motivo, jamais imaginou o que estava por vir. Eram dez nódulos no fígado e a confirmação de um câncer maligno. Em uma consulta somente com os seus pais, o médico informou que, se fosse necessário a quimioterapia, a estudante teria aproximadamente cinco anos de vida. “Quando nos informaram que seria feito o transplante toda a minha família vibrou, mas eu não sabia como reagir. Estava abalada por saber que passaria por uma cirurgia tão grande. Com o tempo, me conformei com a notícia e apenas me preocupava em estar forte para não deixá-los ainda mais tristes”. E, então, entrou com urgência na fila. Em Maringá, cidade à 6h da capital do Paraná, houve um acidente de carro e a família autorizou a doação de todos os órgãos. Era a sua vez. Deu tempo. Apesar de complicações após a cirurgia, artéria hepática e rejeição do órgão, Isabela, hoje com 22 anos, percebe que a maneira como lidou com toda a situação lhe fez ter forças para seguir em frente. “Eu sempre fui muito positiva, sempre pensei que logo sairia dessa”, conta a estudante.
Isabela deixando o seu hospital em Curitiba após a cirurgia.

Sobre a lei Justina, Isabela opina que “esse projeto é muito positivo pois pode salvar muitas vidas. Seria ótimo se no Brasil não precisássemos da aprovação das famílias, uma vez que os órgãos do doador sejam totalmente saudáveis. Acredito ser uma realidade distante pois vejo muitas pessoas totalmente ignorantes em relação ao assunto. Infelizmente, só passa na cabeça quando acontece com elas ou com alguém próximo. Não deveria ser assim. As filas de transplante no Brasil ainda são grandes”. Atualmente, mais de 42 mil pessoas estão nessa condição, esperando a sua vez. O procedimento para a doação de órgãos no país conta com três etapas fundamentais: o diagnóstico, a decisão da família, entrevistas e testes. O Sistema Único de Saúde (SUS) é o maior sistema público de transplantes do mundo, sendo responsável por 93% dos realizados no país. Entre 2010 e 2017, o número de doadores cresceu 75%. No ano passado, 27 mil transplantes foram realizados e o estado de Santa Catarina possui a maior quantidade de doadores do Brasil.

Cynthia Muller acompanha a Isabela e é residente no Hospital Nossa Senhora das Graças, em Curitiba. Considera a lei Justina interessante, mas, acredita não ser o próximo passo necessário para o Brasil. Crê que ainda precisamos melhorar outras coisas antes. “Uma delas é em relação à disponibilidade de exames necessários no protocolo de diagnóstico de morte encefálica. Em alguns lugares, principalmente no interior, o protocolo para por aqui”, relata Cynthia. Outro fator é o trabalho educativo, com os profissionais que realizam a abordagem e, também, com a população. A médica conta que muitos ainda estão completamente despreparados para abordar a família e explicar a morte encefálica. “Apesar das campanhas para doação de órgãos, acredito que exista a necessidade de campanhas que expliquem a situação do paciente na morte encefálica: coração ainda batendo, movimentos que podem acontecer, etc. Uma família não quis doar porque acreditava que, enquanto o coração estivesse batendo, ainda existia uma chance- apesar de todas as explicações e a boa relação entre equipe médica e parentes. Considerando isso, não acredito que seria viável implantar essa lei no Brasil no cenário atual”. Ela completa afirmando que investimentos em melhorias de infraestrutura e educação populacional e de trabalhadores da área da saúde seriam as prioridades no momento. E, quando isso for solucionando, aí sim pode-se pensar na implantação do projeto Justina no Brasil.

MARCELA TEIXEIRA é estudante de jornalismo e participou do “Jornalismo sem Fronteiras”, que leva jornalistas e estudantes de comunicação a Buenos Aires para um mergulho de 10 dias no trabalho de correspondente internacional.

 

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Lei Justina, aprovada na Argentina, altera medidas na doação de órgãos e ainda é uma realidade distante para o Brasil, segundo médica.

Não deu tempo. Justina Lo Cane, 12 anos, faleceu em novembro de 2017 enquanto esperava na fila por um coração. Tinha uma doença cardíaca congênita que havia sido descoberta quando a menina tinha, apenas, um ano e meio de idade. Se manteve saudável por muito tempo através de medicação e tratamento. Porém, na metade do ano passado, começou a sentir fortes dores e, então, foi internada no hospital Fundação Favaloro, Buenos Aires, com a necessidade de um transplante urgente. Mas, não deu tempo. Ou havia pacientes mais graves ou, em outros casos, ocorria à falta de compatibilidade. Assim que a argentina entrou na fila de espera, pediu à sua família para iniciar uma campanha virtual com o objetivo de ampliar a conscientização sobre a importância da doação de órgãos. A ação viralizou nas redes sociais com milhares de posts com as hashtags #MultiplicateX7 e #LaCampañadeJustina. O efeito, nos argentinos, foi imediato. O número aumentou de 80 registrados por dia para 330, de março a junho. Na semana posterior a sua morte, houveram mais doadores que em todo ano de 2016, aproximadamente 48 mil pessoas em sete dias. Um novo recorde na história de doação de órgãos na Argentina.

O conceito por trás de “#MultiplicateX7 é que, se você é um doador, sua vida pode ser multiplicada por sete. As hashtags viralizaram nas redes socias, confira parte da votação no congresso em Buenos Aires.

Hospital Fundación Favaloro, onde Justina esperava pelo seu coração.

Implicações da atualização na lei

No início do mês de julho, foi aprovada a lei Justina, modificando o regime de doação de órgãos no país. A iniciativa inspirada no caso de Lo Cane, votada por unanimidade na Câmara dos Deputados e no Senado, estabelece que todos os cidadãos maiores de idade serão doadores, a menos que expressem a sua vontade de não ser. Essa mudança na lei é decisiva pois implica que os parentes não serão mais responsáveis por autorizar a doação. “A retirada de órgãos e/ou tecidos pode ser feita a qualquer pessoa fisicamente capaz com mais de 18 anos de idade que não tenha deixado um registro expresso de oposição à extração da mesma após sua morte”, afirma o projeto. Trabalhado com a INCUCAI (El Instituto Nacional Central Único Coordinador de Ablación e Implante), a lei foi promovida pelo senador do partido Cambiemos, Juan Carlos Marino. A sessão, na cidade portenha, terminou com todos os deputados aplaudindo em pé e a família de Justina, seus pais, avós e irmãos, emocionados com a decisão.
A nova lei foi votada por unanimidade no Congresso Nacional, localizado em Buenos Aires.

Hoje, na Argentina, mais de 11 mil pessoas estão na fila para serem transplantadas, segundo o INCUCAI. A maioria necessita de um rim, depois córneas e, então, fígado. Em 2017, o número de doações cresceu 15,3%. No mesmo ano, mais de 3 milhões de pessoas manifestaram o seu desejo de doar. Entretanto, o oposto também aconteceu. Mais de um milhão falaram “não”, Buenos Aires, Córdoba, Santa Fé, Salta e Mendonza são as cidades onde mais pessoas não optaram pela doação. A falta de doadores é um problema mundial e, na Argentina, 799 pacientes morreram à espera de um transplante no ano passado. Onde, a cada 10 minutos, uma pessoa entra na fila. A ONG Fundación Continuar Vidas nasceu com o objetivo de fundar uma instituição buscando estrutura para conseguir acompanhar uma família na hora de receber um diagnóstico que não é positivo. Há mais de cinco anos, funciona como um grupo de apoio dedicado a promover, educar e informar sobre a importância da doação de órgãos, medula óssea e sangue. Oferecendo, dessa maneira, assistência às famílias que estejam na fila ou num tratamento prolongado. A secretária geral da ONG, Lúcia Kwist, demonstra preocupação quanto à popularidade da lei Justina: “Neste momento, está se falando mais um pouco sobre a doação de órgãos. Mas, como tudo, com o tempo se diluí. Esse não é um trabalho de uma vez, é um trabalho para a vida. Por isso, o que eu gostaria é que as pessoas entendessem que doar é continuar a vida de mais alguém”.

Realidade brasileira
 
Na América do Sul, a Argentina está em terceiro lugar em relação ao número de doadores. Atrás do Uruguai e do Brasil. Em Curitiba, no Dia Nacional da Doação de Órgãos, em 2016, Isabela Zucoloto, com 19 anos na época, passou por um transplante. Estranhou uma bola que surgiu em sua barriga e o cansaço constante. Quando ela decidiu ir ao médico, lhe receitaram antidepressivos por acreditarem se tratar, apenas, de muito estresse. Seu pai, por já ter trabalhado na área, nunca lhe deixou toma-los. Insistiu novamente e, numa outra consulta, sem pedir nenhum exame, diagnosticaram hérnia. Nesse meio tempo, ao caminho da faculdade, sentiu fortes dores abdominais. Isabela conta que as dores assemelhavam-se a cólicas menstruais, por esse motivo, jamais imaginou o que estava por vir. Eram dez nódulos no fígado e a confirmação de um câncer maligno. Em uma consulta somente com os seus pais, o médico informou que, se fosse necessário a quimioterapia, a estudante teria aproximadamente cinco anos de vida. “Quando nos informaram que seria feito o transplante toda a minha família vibrou, mas eu não sabia como reagir. Estava abalada por saber que passaria por uma cirurgia tão grande. Com o tempo, me conformei com a notícia e apenas me preocupava em estar forte para não deixá-los ainda mais tristes”. E, então, entrou com urgência na fila. Em Maringá, cidade à 6h da capital do Paraná, houve um acidente de carro e a família autorizou a doação de todos os órgãos. Era a sua vez. Deu tempo. Apesar de complicações após a cirurgia, artéria hepática e rejeição do órgão, Isabela, hoje com 22 anos, percebe que a maneira como lidou com toda a situação lhe fez ter forças para seguir em frente. “Eu sempre fui muito positiva, sempre pensei que logo sairia dessa”, conta a estudante.
Isabela deixando o seu hospital em Curitiba após a cirurgia.

Sobre a lei Justina, Isabela opina que “esse projeto é muito positivo pois pode salvar muitas vidas. Seria ótimo se no Brasil não precisássemos da aprovação das famílias, uma vez que os órgãos do doador sejam totalmente saudáveis. Acredito ser uma realidade distante pois vejo muitas pessoas totalmente ignorantes em relação ao assunto. Infelizmente, só passa na cabeça quando acontece com elas ou com alguém próximo. Não deveria ser assim. As filas de transplante no Brasil ainda são grandes”. Atualmente, mais de 42 mil pessoas estão nessa condição, esperando a sua vez. O procedimento para a doação de órgãos no país conta com três etapas fundamentais: o diagnóstico, a decisão da família, entrevistas e testes. O Sistema Único de Saúde (SUS) é o maior sistema público de transplantes do mundo, sendo responsável por 93% dos realizados no país. Entre 2010 e 2017, o número de doadores cresceu 75%. No ano passado, 27 mil transplantes foram realizados e o estado de Santa Catarina possui a maior quantidade de doadores do Brasil.

Cynthia Muller acompanha a Isabela e é residente no Hospital Nossa Senhora das Graças, em Curitiba. Considera a lei Justina interessante, mas, acredita não ser o próximo passo necessário para o Brasil. Crê que ainda precisamos melhorar outras coisas antes. “Uma delas é em relação à disponibilidade de exames necessários no protocolo de diagnóstico de morte encefálica. Em alguns lugares, principalmente no interior, o protocolo para por aqui”, relata Cynthia. Outro fator é o trabalho educativo, com os profissionais que realizam a abordagem e, também, com a população. A médica conta que muitos ainda estão completamente despreparados para abordar a família e explicar a morte encefálica. “Apesar das campanhas para doação de órgãos, acredito que exista a necessidade de campanhas que expliquem a situação do paciente na morte encefálica: coração ainda batendo, movimentos que podem acontecer, etc. Uma família não quis doar porque acreditava que, enquanto o coração estivesse batendo, ainda existia uma chance- apesar de todas as explicações e a boa relação entre equipe médica e parentes. Considerando isso, não acredito que seria viável implantar essa lei no Brasil no cenário atual”. Ela completa afirmando que investimentos em melhorias de infraestrutura e educação populacional e de trabalhadores da área da saúde seriam as prioridades no momento. E, quando isso for solucionando, aí sim pode-se pensar na implantação do projeto Justina no Brasil.

MARCELA TEIXEIRA é estudante de jornalismo e participou do “Jornalismo sem Fronteiras”, que leva jornalistas e estudantes de comunicação a Buenos Aires para um mergulho de 10 dias no trabalho de correspondente internacional.

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