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Quem, então, agora eu seria?

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A frase retirada da música “O velho e o Moço”, da banda brasileira Los Hermanos, ironicamente reflete o momento em que nossos vizinhos argentinos vivem atualmente no cenário musical. A “música argentina”, que engloba todos os gêneros nacionais, diferentemente da música popular brasileira, dá seus primeiros passos lentamente nas últimas décadas para construir público e consagrar-se soberana no país.

Confira a matéria produzida por nossa correspondente Isabela Yu durante o Programa Jornalismo sem Fronteiras em Buenos Aires


No silencioso bairro de Saveedra,  no final da cidade de Buenos Aires, muitos quilômetros longe dos bairros centrais como Palermo e Recoleta, uma pequena casa faz muito barulho nas noites de segunda feira. As luzes são escuras e as paredes repletas de pôsteres de músicos conhecidos, como Peter Gabriel e Mick Jagger. A aura da pequena salinha, abarrotada de equipamentos musicais, transparece no que acontece ali. Enquanto duas pessoas observam, outras quatro ensaiam canções com a cara da cena indie argentina.

A banda em questão se chama Rabiosa, não como a música da cantora colombiana Shakira, e, segundo os próprios rapazes, eles possuíam o nome antes. Os jovens músicos gravaram independentemente seu primeiro disco no final de 2012: Manto de Color, que reúne oito faixas de rock pop de qualidade. O conhecido rock nacional, que se tornou notório a partir da década de 1960-1970, fornece grandes músicos, como o controverso cantor  Charly García, o melhor guitarrista da América Latina segundo a Revista Rolling Stone,  Pappo’s Blues, o também aclamado Miguel Abuelo e Luis Alberto Spinetto.

O som das bandas novas ainda possui elementos do passado incorporados aos sintetizadores usados no presente. É como se os solos de guitarra de García tivessem encontrado as batidas da bateria da banda nova iorquina  The Strokes, que é também muito popular entre o público jovem. Essas lendas influenciaram também o que músicos fazem hoje em dia no blues, no metal, heavy metal e o mais puro rock’n’roll. Para o jornalista e estudante Catriel Remedi, a mudança do rock nacional começou na década de 1980 e se estende até hoje. “Há um encontro da escola velha e a nova, essa que tende ao rock eletrônica, ao uso de samplers nas composições. E as máquinas modernas de gravação e a tecnologia influenciam na sonoridade atual”.

Da nostalgia a modernidade

Os quatro jovens músicos são formados pela EMBA (Escuela de Música de Buenos Aires).  “O embasamento teórico e a disponibilidade de diversos instrumentos com certeza contribuiram na maneira de produzir o som próprio do grupo”, sublinha o baixista colombiano Jorge Pinilla. A facilidade de gravar músicas em casa ou em pequenos estúdios significa gastar pouco e misturar diferentes estilos para criar algo único. Como o caso das bandas argentinas Poseidotica e Dancing Mood, sendo a primeira uma mistura de rock progressivo e instrumental,  e a segunda,  uma mescla de reggae e ska.

Pinilla, o baixista, em ação durante o ensaio da banda Rabiosa
Pinilla, o baixista, em ação durante o ensaio da banda Rabiosa

As grandes gravadoras apoiam apenas artistas que possuem o tipo de música comercial, então músicos considerados como under, recorrem à internet como meio de tornar seu trabalho conhecido. A harmonista Sandra Vasquez  teve seu álbum inteiramente financiado por doações de fãs.  Catriel diz “acredito que estamos vivendo um processo, em que é necessário repensar a maneira em que os jovens consomem música, eu incluso nisso”.  As informações sobre novidades musicais “pairam no ar”, como coloca o jornalista. E a cena independente está se profissionalizando, a informação colocada na internet é ainda “desorganizada”, mas frisa a importância dos canais de difusão, as redes sociais.

Nossos vizinhos possuem poucos portais influentes de música independente no país, como o rock.com.ar e o eiacople.com. Possuem a teoria de que a música que chega para eles e dita como atual, já se passou faz tempo no hemisfério norte, e consideram-se um povo nostálgico musicalmente. Em paralelo ao que acontece no Brasil, com numerosos portais nacionais destinados as novidades musicais, os argentinos não parecem ter essa urgência e ansiedade em estarem atualizados e conectados ao resto do mundo o tempo inteiro. O   jornalista do site rock.com.ar  e da revista eletrônica Dale!, Fabrizio Pedrotti, acredita que as mídias sociais, como Twitter e Facebook estão “matando”  as revistas e websites.

No país, além da revista Rolling Stone, são nacionais  apenas as revistas Jedbangers,  especializada em heavy metal, a Roots,  destinada ao público que gosta de reggae e a Mavirock, de rock em geral. Como no caso do próprio Fabrizio, que está no último ano da faculdade de jornalismo, o melhor é “manter-se independente”. Ele já entrevistou nomes consagrados do rock como Jethro Tull, The Cult e Deep Purple quando em turnê no país. Declara que “música não deveria ser influenciada pelos interesses de grandes gravadoras, precisa ser honesta e continuar se renovando para ser relevante nos próximos anos . Há a teoria de que as pessoas tendem a acreditar  que bandas do passado são de melhor qualidade do que as de hoje em dia. Mas no futuro lembraremos do som feito atualmente como um espelho das necessidades de nossa sociedade”.

Muito popular entre os jovens, o gênero musical cumbia, que mistura um tipo de tecnobrega com ritmo eletrônico, viu seu som sair da periferia e alcançar um enorme público na capital.  Suas letras falam de violência, drogas e sexo, retrato do cenário do lugar de onde surgiu. Hoje em dia, com  a falta de casas de show para bandas pequenas e médias tocarem, diz-se que o rock nacional vê sua decadência. O crescimento de gêneros musicais como a própria cumbia, reggae e música eletrônica também dificulta o surgimento de uma liderança na música independente. As letras ditas callejeras, ganham espaço com as camadas mais pobres por sua proximidade com a realidade em que vivem.

A cena underground das bandas de rock mudou bastante depois de 30 de dezembro de 2004. O incêndio na casa noturna República Cromñón,  durante o show da banda Callajeros, provocou severas mudanças culturais e políticas na cidade. A tragédia culminou na morte de 194 pessoas e cerca de 1400 feridos. O chefe do governo Aníbal Ibarra acabou sendo destituído do cargo e culpado como responsável político pelo massacre, por não cumprir seus deveres de funcionário público. A assistência prestada as vítimas e seus familiares também mostrou-se insuficiente,  tendo o ex governador declarado que “ Eu cuido da minha parte na tragédia, mas por que eu tenho que cuidar de tudo? Sou responsável apenas nos termos de responsabilidade  política”.

A tragédia marcou a cena cultural, pois  criou uma grande consciência na população sobre segurança em lugares destinados a espetáculos, restringindo o número de casas de show. O jornalista de espetáculos do jornal La Nación, Gabriel Plaza, acredita que “antes mesmo do incêndio, a cena do rock já havia se transfigurado com a crise de 2001, que no âmbito social, político e econômico fez os argentinos se questionarem sobre sua própria identidade nacional”. A crise do rock mainstream, coloca o foco na variedade da cena independente, onde coisas mais interessantes surgem com os mashups – misturas de estilos e gêneros.

Identidade própria

Culturalmente  os argentinos, em geral, estão sempre de prontidão para discutir assuntos relacionados ä política e ao governo. E  na música não poderia ser diferente. O clima do país é de protestos contra o governo Kirchner, mas a cena underground porteña canta por “love songs”, como o vocalista Facundo Parla comenta em tom de ironia. Recentemente, o vice presidente Amado Boudou se apresentou com sua banda de rock favorita, La Mancha de Rolando,  em um evento financiado pela Secretaria Nacional de Cultura nas Ilhas Malvinas.

Muitos artistas conhecidos que antes não se posicionavam, decidem declarar seu apoio ou repúdio a cena política. Quando o prefeito conservador Mauricio Macri obteve a reeleição, o músico Fito Paez em artigo publicado no jornal “Pagina 12”,  ferozmente atacou a população. ”Gente com ideias para poucos, egoísta. Isso é o que a metade da cidade autônoma de Buenos Aires quer para si mesma”. E que sente “nojo”, subentende-se seu apoio à oposição Daniel Filmus, que por sua vez é contra a presidenta Cristina Kirchner.

Um povo “fatalista”, como retoma Plaza, as letras e melodias do rock são destinadas ao dia a dia, em contrapartida ao retrato denso, cotidiano e social presente no tango. Outro ritmo tradicional argentino, o tango vê-se transformado nas últimas décadas, com as misturas de tango e música eletrônica, ou tango e ritmos folclóricos. Além do rock nacional se renovando, para o jornalista, em alguns anos existirá apenas a “Música Argentina”, que é a mestiçagem de ritmos, como nossa MPB. Quando todos os gêneros da música local atravessarão seus próprios limites e assim fundirem-se em um grande ritmo, que englobará o rock, ritmos folclóricos, tango , cumbia e música eletrônica. Agora está havendo uma integração e a identidade nacional que está se reinventando. Festivais de música independente que mesclam os ritmos estão se tornando comum para o público no país.

Densidade sonora

No campo das artes, seja no teatro ou cinema, qualquer tipo de forma de expressão representa o momento em que a sociedade onde foi criada vive. Como no subte de Buenos Aires, os ladrilhos nas paredes datam a época em que foi criado. Em contrapartida, os vagões dos carros são todos grafitados em cores gritantes e letras enormes. A diferença do que era considerado arte no ano de 1913, ano em que foi inaugurado e o que é arte agora.

Na música não deixa de ser diferente. A renovação dos sons é gradual e com o tempo vai se modificando. O passado do rock nacional não existe para ser esquecido, mas para ser absorvido e transformado em algo novo e único. Com a cena underground crescendo, em comparação ao declínio das grandes gravadoras, que precisam competir público com a internet entre outros fatores. Canções destinadas à massa sempre existiram e todos os dias novas bandas surgem na luta para serem notadas pelo público. Ao se escutar a pluralidade de sons transmitidos pela cidade, a música tipicamente argentina tem um viés característico e pelas previsões continuará se expandindo e se  consolidando cada vez mais.

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