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Os olhos sem brilho que me fizeram piscar

SARA ABDO, DE BUENOS AIRES

Aquela imagem dos olhos pouco transparentes na janela me chamavam a atenção e eu quase perdia o conteúdo que o Ignacio Mondenese, guia da Espacio Memoria y Derechos Humanos, Ex Escuela de Mecanica de la Armada (ESMA), contava-me com tanta propriedade.

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A ESMA já foi uma instituição de ensino militar que, entre 1924 e 1976, recebeu jovens de todo o país para ensiná-los desde serviços na cozinha até o ofício militar. Em um conjunto de prédio tomado por árvores e folhas secas caídas, que indicam o inverno em que estamos eu e um grupo de 19 jovens jornalistas brasileiros, Mondenese contou que as construções foram incorporadas ao sistema de repressão durante a ditadura cívico-militar na Argentina (1976-1983).

O guia deve ter falado por uns vinte minutos sem que eu lhe desse muita bola. Tudo mudou quando entramos numa sala retangular com mais de 50m de comprimento, pé direito alto e gélida. Vi o espaço do lado de fora por meio das janelas de vidro que seriam transparentes, não fosse a estampa dos rosto e datas de desaparecimento de vítimas da ditadura. Eu via o lado de fora da sala por meio do rosto de pessoas que nunca vou conhecer.

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Gelei. Segundo estimativas são 30 mil argentinos desaparecidos e apenas 8 mil corpos identificados. Não há registro oficial porque os militares ou destruíram ou não guardaram os dados – confesso que quando ouvi agarrei-me ao meu passaporte, na ilusão de que segurar um documento me garanta alguma coisa.

Todos aqueles rostos na janela tinham o denominador comum entre os argentinos nos anos 70 e 80. “Subversivos”, eram considerados opositores às medidas econômicas implantadas na região latino-americana. Queriam exercer os direitos que o mundo conquistara nos meados da década de 60 – democracia, fim das guerras mundiais, movimento hippie, feminismo.
A ditadura argentina foi uma das mais repressivas da região da América Latina. Após decretado o estado de sítio, ficou proibida a reunião entre pessoas – poderia ser um encontro para desestabilizar o governo. As Madres de Mayo (Mães de Maio), que tinham seus filhos desaparecidos, caminhavam pelas ruas até o momento em que praças como a Plaza de Mayo, no centro de Buenos Aires, estivesse tomadas por mães que perderam seus filhos para a ditadura militar. Segundo Mondenese, era a única forma de manifestação em um contexto de proibição.

Em baixo de chuva e entre os ventos gelados do inverno, o assunto ficava mais denso a cada momento. Sempre dá pra piorar né? Pois isso aconteceu quando Mondenese falou sobre o “Vuelo de la Muerte”, uma tática de execução e sumiço do corpo. Aos “subversivos” era aplicado o remédio para sono profundo. Adormecidos, os corpos eram jogados em aviões, de onde caiam em queda libre nas águas argentinas e uruguaias. Não se sabia se ou quando ocorreria o “Vuelo de la Muerte”, também conhecido como Traslado pelos então prisioneiros.

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Fernando Kroton, sequestrado em 14 de junho de 1977 e mantido como desaparecido até final do ano seguinte, disse em depoimento à justiça argentina, já durante o período democrático, que cada prisioneiro começava a viver duas vidas a partir do momento de sua captura. “Para a sociedade éramos desaparecidos, mas para nós, éramos o quê?”

Eu já não aguentava ouvir mais uma palavre sequer do Mondenese. Ao mesmo tempo, senti que precisava dele para conseguir enfrentar assuntos como os sofrimentos vividos em uma ditadura. Ainda é difícil manter-me no prumo em dias como hoje.

***

Obs: Passei a tarde e escrevi o texto pensando no Duds, um professor de história da América Latina que me enche de textos e, entre um café e outro, força-me a encarar assuntos difíceis. Tenho a sorte de chamá-lo de amigo.

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