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A estrutura do descontentamento

Enquanto a Espanha se recupera de uma crise recente, o Brasil inaugura a sua; apesar das suas origens comuns, os desfechos parecem encerrar de formas completamente diferentes.

Vista da Puerta del Sol, em Madri, onde milhares de pessoas se concentraram na "Marcha pela mudança". 31 de janeiro de 2015. Foto: EFE/Chema Moya.
Vista da Puerta del Sol, em Madri, onde milhares de pessoas se concentraram na “Marcha pela mudança”. 31 de janeiro de 2015. Foto: EFE/Chema Moya.

 

HELENA L. CENEVIVA

DE BRASÍLIA

Com o objetivo de atrair investimentos espanhóis, o mais novo ministro das Relações Exteriores, José Serra, foi a Madrid, em novembro, sob o lema “Em tempos de incerteza, união entre amigos”. Defendeu que a parceria entre Brasil e Espanha se estreitasse ainda mais, sobretudo devido às incertezas levantadas, internacionalmente, pelo Brexit e pela eleição de Donald Trump e, internamente, pelas turbulências políticas.

As relações entre Espanha e Brasil tiveram início na primeira metade do século XIX, quando o país reconheceu a independência do Brasil, em 1834. No século seguinte, o aprofundamento dos laços deu-se de tal forma que, com a chegada dos anos 2000, os dois governos já tinham considerável proximidade. Hoje, ainda que não se ouça falar com frequência de seu relacionamento, a parceria entre os Estados tem bastante peso.

Espanha e Brasil são reciprocamente grandes investidores: por aqui, a segunda maior fonte de investimento estrangeiro é espanhola, enquanto, por lá, a terceira maior fonte é brasileira. O país tropical também pertence a um seleto grupo de 22 nações nas quais o governo espanhol mantém uma estrutura diplomática mais complexa e é a nação com o maior número de Institutos Cervantes no mundo.

Naturalmente, proximidade espanhola ultrapassa os limites nacionais e estende-se ao continente. Uma das grandes potências mundiais em matéria de infraestrutura, destaca-se na região com áreas relacionadas ao desenvolvimento. Segundo o Ministério de Asuntos y Cooperación Internacional espanhol, “a Espanha é um dos principais investidores na América Latina, com uma presença destacada em setores chave do processo de desenvolvimento e modernização social, como o setor bancário, a energia, a comunicação, construção e gestão de infraestruturas, o turismo ou a provisão de serviços públicos”.

Além dos estreitos laços comerciais e de colaboração para o desenvolvimento, Brasil e Espanha, em matéria de cooperação internacional, aproximam-se também em seu trabalho contra os tráficos de drogas e pessoas. Atuam conjuntamente de modo a combater um problema que se inicia em um continente e termina no outro.

A crise

A partir dos anos 2009 e 2010, momento no qual a crise europeia começou a atingir a Espanha com maior vigor, o Brasil passou a receber mais imigrantes. Se em 2008 abria portas a quase 40 mil estrangeiros, em 2009, apenas um ano depois, já eram quase 90 mil. À época com um mercado aquecido e repleto de oportunidades, a República foi um destino muito procurado pelos europeus prejudicados pela crise generalizada. Hoje, Portugal, Itália, França, Alemanha, Espanha e Grã-Bretanha figuram dentre as 20 nacionalidades de imigrantes mais presentes no Brasil.

Embora o jogo tenha virado com a gradual recuperação espanhola e a falência brasileira,  o Brasil não perdeu sua posição de destaque mundial, especialmente dentro do Mercosul ou da Ibero-América. Apesar da turbulência vivida internamente, sob as vistas internacionais o país permanece relativamente sólido e oferece oportunidades a longo prazo, intervalo de tempo que interessa aos economistas, investidores e estadistas.

Da mesma forma, a posição de cinco deputados espanhóis no Parlamento da União Europeia, contrários ao governo de Michel Temer, não fez com que o Brasil perdesse seu peso em relação à Espanha. Em uma declaração pública, pediram para que se cessasse as relações comerciais entre os países, uma vez que o governo brasileiro carecia “de legitimidade democrática”. Muito embora não possuíssem relevância suficiente para criar consequências significativas nas relações Brasil-Espanha (são 5 em um grupo de 751 parlamentares), seu efeito sobre a opinião pública não foi irrelevante.

O fenômeno “Podemos”

Os deputados são do Podemos, partido espanhol que, formado em 2014, ascendeu vertiginosamente. Embora não configure maioria no parlamento da Espanha (muito menos no da UE) representa um importante desejo por reestruturação de valores e criação de novas ordens.

Nascido com a crise que assolou o país a partir de 2007-2008, buscava responder às antigas e falidas estruturas nacionais. Amplamente apoiado pelos jovens, apresentou-se como o primeiro passo na direção contrária de um modo de ser ultrapassado. Um voto no Podemos ou no Ciudadanos(mais moderado e menos jovem) não representava, necessariamente, um voto neste ou naquele, mas um ‘não’ aos tradicionais PSOE e PP. Muito embora algumas das propostas dessas novas organizações não fossem sequer factíveis, foi sua virtuosa conquista de espaços que chamou a atenção.

A Espanha atual está deixando para trás sua crise e já caminha recuperação adentro, enquanto o antes próspero Brasil cai em espiral. Ainda que as crises brasileira e espanhola tenham sido em muito semelhantes, existe um aspecto que as diferencia de maneira cabal. Não se trata de sua cronologia, de seu contexto histórico ou de características geográficas ou demográficas que influenciaram no comportamento de cada um dos países, mas, sim, da resposta social dada às turbulências vividas internamente.

Estruturando o descontentamento

Com a crise, a Espanha – e sobretudo os jovens – redefiniram prioridades e se propuseram a reformar o modelo tradicional de seu país. Antiquado, já não correspondia mais às necessidades do século XXI e denunciava uma sede de mudança. Em um momento difícil, optaram por um caminho árduo, porém necessário, ao escolherem estruturar o descontentamento. Com soluções e perspectivas pensadas coletivamente, começaram a traçar linhas ordenadas em meio ao caos generalizado.

A ascensão do Podemos e do Ciudadanos e a falência do PSOE e do PP tem simbolizado, justamente, esta caminhada coletiva em direção a novos moldes. Não que seja possível dizer o que o futuro guarda como consequência dessas reestruturações, mas sua virtude não residiu na certeza de seu sucesso, se não na busca de um projeto de país: superadas as divergências naturais, o que os espanhóis fizeram foi criar modelos que fizessem do futuro uma perspectiva real.

Enquanto no Brasil nos debatemos em areia movediça buscando soluções individuais, na Espanha, a crise começou a virar passado a partir do momento em que as prioridades particulares deixaram de sobrepor-se às coletivas tanto na infraestrutura quanto (e ainda mais importante) na superestrutura. Os brasileiros parecem agarrar-se cada qual a sua fita em um emaranhado de prioridades aparentemente inconciliáveis, ao mesmo tempo em que continuam dominando (em muito de maneira irresponsável) as elites políticas e econômicas.

A capacidade espanhola de estruturar o descontentamento foi sua grande virtude. Apesar das divergências naturais, a saída da crise só se deu porque houve um consenso quanto às prioridades do país. Enquanto na República das Bananas cada um corre em direção a seu cacho e pisoteia no fruto alheio, na Espanha – ao menos dessa vez – foram todos em direção a objetivos semelhantes.

Helena L. Ceneviva é estudante de Relações Internacionais e Consultora de Comunicação na Prisma Consultoria Internacional. Participa do programa “Jornalismo & Poder”, que leva jornalistas e estudantes de áreas correlatas a Brasília para uma imersão de uma semana na cobertura política.

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