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Como o diário argentino La Nacion se tornou a maior referência em jornalismo de dados da América Latina

Em 2010, o repórter de política Diego Cabot, do argentino La Nación, recebeu um vazamento com potencial de convulsionar um dos principais ministérios do primeiro mandato de Cristina Kirchner. Tratava-se de um CD com 26 mil e-mails do Ministro dos Transportes. Por duas semanas, quatro jornalistas tentaram buscar manualmente fatos relevantes em meio aos milhares de documentos. Mas o sucesso veio mesmo em 40 minutos, depois do então gerente de informática do diário, Ricardo Brom, estruturar um sistema de busca para os jornalistas consultarem de forma automatizada os dados do vazamento.

A experiência mostrou à direção do jornal que aproximar a área de tecnologia da área editorial poderia render bons frutos. Momi Peralta, então gerente de treinamento e desenvolvimento multimídia, teve a confirmação que faltava de que valeria investir em um time especializado em dados para a redação.

“No fim de 2010 já vinha observando os movimentos de dados abertos nos EUA com Obama, a plataforma data.gov.uk do Reino Unido, eventos e hackatonas promovidas por veículos como o New York Times e o Guardian. Ao mesmo tempo, chegou pra gente esse desafio dos milhares de e-mails do ministro. No início de 2011, organizamos uma reunião com a secretaria de redação e três jornalistas interessados e se formou o embrião da unidade de dados do La Nación. A partir disso começamos a ver todas as oportunidades de unir jornalismo e tecnologia”, conta Momi.

Essa equipe que se dedica exclusivamente a trabalhar projetos especiais de jornalismo de dados é até hoje liderada por Momi e soma seis pessoas fixas. Coleciona prêmios nacionais e internacionais, incluindo o prestigioso Data Journalism Award, o oscar de quem investe em cavar histórias de bases de dados. Desde a primeira edição da premiação, em 2012, o jornal marcou presença como finalista todos os anos e saiu vitorioso quatro vezes consecutivas – de 2013 a 2016.

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Enquanto veículos de mídia latino-americanos enxugam custos e demitem jornalistas, o La Nación viu no investimento em uma unidade de jornalismo de dados um caminho eficiente de produzir conteúdo diferenciado e de qualidade para suas várias plataformas. Para Momi, o êxito da equipe – e sua manutenção mesmo em época de crise e passaralhos – se explica pela relevância que sua produção demonstra ter para a audiência.

“Cobrimos políticas públicas, educação, gastos públicos, desenvolvimento humano, meio ambiente. Temas que nem sempre são campeões de page views, mas que ajudam a construir vínculos de confiança com comunidades. Criamos serviços que ajudam as pessoas a entender e acompanhar temas complexos, como as votações no Congresso“, explicou. “E quanto mais produtos lançamos, mais eficientes nos tornamos, porque os dados são atualizados e se mantêm relevantes mesmo depois de muito tempo”.

O vínculo com as comunidades estabelecido pelo La Nación Data não se restringe ao consumo de notícias. Alguns de seus projetos mais reconhecidos envolveram apuração distribuída, com participação cidadã.

Um deles foi lançado em 2015, logo depois das primárias das eleições presidenciais. Com o sistema eleitoral sob suspeita de fraude, a equipe fez uma chamada de colaboração cívica para checar 90 mil telegramas eleitorais – originalmente disponibilizados em PDFs. Depois de conseguir revisar 20 mil documentos e estruturá-los em uma base única, os jornalistas analisaram os dados e revelaram que 48% dos telegramas apresentavam algum tipo de irregularidade. Uma mensagem ao governo de que o mesmo tipo de controle social se aplicaria às eleições finais.

Florencia Coelho, gerente de treinamento da unidade de dados – e uma assumida evangelizadora por dados abertos – coordenou o trabalho colaborativo com os telegramas. Segundo ela, a transparência e o espírito colaborativo dos membros da equipe permitem esse tipo de produto, que fortalece a credibilidade do jornal. “Um projeto de grande impacto como esse não dá pra fazer sozinho. Tivemos colaboração de centenas de cidadãos, de organizações da sociedade civil e grupos de estudantes universitários. Isso também adicionou credibilidade ao produto do jornal. Não é ‘o La Nación criticando o governo’, é a sociedade envolvida no que é de interesse público”, afirmou.

Outra investigação colaborativa de impacto foi a checagem de 40 mil áudios de escutas telefônicas do procurador federal Alberto Nisman, encontrado morto em sua casa em 2015. Ele investigava um atentado em Buenos Aires que matou 85 pessoas, considerado o maior atentado terrorista da América Latina. Nos dois casos, a apuração foi possível graças a uma plataforma de colaboração aberta desenvolvida pela unidade de dados para checagens colaborativas de documentos públicos.

 

VozData, como foi batizada a plataforma, é um exemplo da estratégia do La Nación de desenvolver softwares e aplicativos com capacidade de replicação e dos quais se pode extrair distintas histórias. “O que buscamos fazer é ser hiperprodutivos. Pensamos projetos de alcance e longa duração. Oferecemos semanalmente conteúdo de qualidade multiplataforma: para impresso, online, TV, redes sociais. Buscamos sinergias para gerar valor a muitas seções do diário, e isso demonstra que investir em jornalismo de dados a longo prazo é um bom negócio”, ressalta Florencia.

Com um time enxuto, apostar em projetos de mais fôlego tem se mostrado tão importante quanto expandir a cultura de dados para toda a redação do diário. “É injusto dizer que somos apenas seis. Estamos constantemente crescendo e aumentando em músculo jornalístico, porque outros jornalistas veem valor no que fazemos e se aproximam. Não somos uma esquina na redação, ajudamos a gerar uma mentalidade data-driven internamente”.

Sete anos depois de ajudar o repórter de política a encontrar as histórias que buscava em meio a milhares de e-mails, Ricardo Brom já ocupa quase integralmente seu tempo em atividades editoriais e é uma das seis figuras tarimbadas da equipe. Passou de gerente de TI para gerente de inteligência de dados. É a prova em pessoa da mudança de mentalidade que colocou o jornal na posição de referência internacional em investigações guiadas por dados.

Ricardo vê o perfil variado dos integrantes da unidade de dados como seu maior diferencial.

“O que faz La Nacion Data tão exitosa é o fato de reunir pessoas capazes de cobrir todo o ciclo de vida dos dados, desde a obtenção até a apresentação. Temos uma especialista em lei de acesso à informação, que sabe onde buscar os dados. Temos uma especialista em data mining, temos especialistas em visualização. E também contamos com o trabalho da Florencia e da Momi de se relacionar com distintas comunidades, levando a cultura de dados abertos a órgãos públicos e outros espaços e mostrando a importância disso pra produzirmos melhor jornalismo e termos uma sociedade mais informada”, conta o engenheiro.

Para se manter na vanguarda do jornalismo de dados, treinamentos, hackatonas, conversas com especialistas e participações em eventos internacionais de hackativismo e dados abertos fazem parte da rotina da equipe tanto quanto desvelar histórias escondidas em bases de dados. Essas atividades, segundo Florencia, ajudam a gerar um círculo virtuoso entre jornalistas e sociedade civil. “É algo que toma muita energia, mas consideramos importante. Temos um papel que é quase de ONG mesmo. Montamos e abrimos bases de dados, rompemos com o paradigma exclusivista, já treinamos até concorrentes! (risos)”

Olhando para outros times especializados em dados de redações da América Latina, Florência aponta organizações menores, como as peruanas Ojo Publico e Convoca, como exemplos de que não é necessário um aporte de investimentos grande para se fazer jornalismo de dados de qualidade.

Para ela, mais importante é criar uma cultura em que se estimule o aprendizado e a troca de conhecimento. “É preciso buscar aliados, e nem sempre os aliados estão dentro da redação, às vezes é um grupo de ativistas que pode ajudar, um programador interessado em transparência pública. Não há projeto impossível se aplicarmos tecnologia e colaboração. Isso está no DNA do La Nación Data e é o que nos faz ser o que somos hoje”, conclui.

Fonte: Centro Knight de Jornalismo

Por: Natalia Mazzote


O jornal La Nacion é um dos veículos visitados pelos participantes do programa Jornalismo Sem Fronteiras em Buenos Aires, que têm a chance de conversar com os profissionais do jornal e aprender um pouco sobre como ele funciona. Saiba mais e participe!

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