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Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí

Há mais de 20 anos em Buenos Aires, o carioca Renato dos Santos se tornou conhecido tocando samba na noite portenha

MATHEUS PIMENTEL

DE BUENOS AIRES

 

Nascido e criado em Senador Camará, na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, o músico Renato dos Santos titubeia vez ou outra para se lembrar de alguma palavra em português. O motivo? “Aqui eu tô em casa”, ele me diz em um café no centro de Buenos Aires, cidade onde reside há mais de duas décadas.

Conhecido na noite portenha, ele transparece alegria ao falar sobre como é querido. “Eu chego e parece que chegou o rei, ‘chegou o mestre!’”. Seu público é um misto de argentinos, brasileiros, uruguaios, franceses, paraguaios e um tanto de outras nacionalidades. Renato é categórico ao afirmar que os argentinos gostam da música brasileira.

Foi a habilidade ao violão que rendeu a Renato a ida a Buenos Aires, em 1993. (DAVID fotografia/Reprodução)
Foi a habilidade ao violão que rendeu a Renato a ida a Buenos Aires, em 1993. Foto por: DAVID fotografia/Reprodução

Prestes a completar 63 anos, o carioca, que esbanja quase dois metros de altura, tem o samba como carro-chefe, mas também trafega no pagode, samba-canção, bossa nova, bolero e até rock brasileiro. Ele se perde ao enumerar os instrumentos que domina: violão, cavaquinho, surdo, tamborim, banjo… Chegou a dar aulas particulares de percussão e cavaquinho e também em centros culturais de destaque na cidade, como o San Martín e Nuevo Milenio.

Renato usa a palavra “antiga” para classificar a música que toca. Diz que às vezes pedem canções atuais, mas, como não é bem a praia dele, não se aventura por essas bandas. Se ele se ausenta, os donos dos bares logo reclamam, pedindo que reapareça. Com apresentações marcadas até dezembro, também toca em eventos e festas privadas como aniversários e casamentos.

No Boteco do Brasil, situado no bairro boêmio de Palermo, toca religiosamente todos os domingos desde que o estabelecimento abriu as portas, há cinco anos. Às vezes faz ainda shows extras em feriados prolongados. “Renato nos ajudou muito a crescer, ele é bem conhecido na Argentina”, conta Amanda de Melo, funcionária do Boteco, que nos dois primeiros anos funcionava em outro endereço e era muito menor. De acordo com Amanda, quando ele se apresenta, os funcionários até afastam as mesas para abrir espaço para os clientes, que aí caem na dança.

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Renato se apresenta semanalmente no Boteco do Brasil, estabelecimento que ajudou a prosperar. Foto por: Matheus Pimentel

Renato sorri quando pergunto como veio parar em Buenos Aires. Uma história “muito engraçada e repentina”, diz. Conhecia o músico baiano Josenildo Pires, sujeito “que canta uma maravilha e imita qualquer voz, Nelson Gonçalves, Elba Ramalho, Alcione” e se apresentava na Argentina fazia anos. Josenildo estava insatisfeito com a forma com que se tocava violão no país e, em passagem pelo Brasil, disse a amigos que estava buscando um violonista “que toca de tudo” para acompanhá-lo. Justamente nessa época, uma banda de que Renato fazia parte se dissolveu e um dos ex-integrantes mencionou seu nome para Josenildo. “Ele me pediu pra acompanhar ele em algumas músicas”, gostou e até bancou passagem e estadia de Renato.

“Nem me despedi da minha família, sabia que ia ser duro para sair”. Renato pediu as contas da empresa em que trabalhava como pintor, ofício que também seguiu por muitos anos depois de deixar o Brasil. Pôs os pés na Argentina em 6 de julho de 1993 e ficou.

Duro ir embora, mas o dinheiro era promissor: “O pessoal aqui [em Buenos Aires] tava pagando na época, por hora, 200 dólares. E lá, ganhar 5 dólares era difícil”. Hoje, afirma, não pagam nem 100. Renato, que no momento não está dando aulas nem trabalhando como pintor, consegue se manter apenas com o que ganha das apresentações.

Morando em um país com 0,4% de negros (segundo o último censo, em 2010), Renato diz que sentiu na pele o preconceito, especialmente no início. “Eu fui preso com um minuto na Argentina”. Ele, que havia atravessado a fronteira a pé, ficou detido por 24 horas e perdeu o primeiro show marcado. Conta que poucos dias depois foi abordado por um homem que, além de drogado, estava armado. Um policial levou os dois para a delegacia. Ao tentar explicar o que havia ocorrido, gesticulou e tocou no braço de um policial, que cuspiu e gritou “não me toque!”.

Pergunto sobre as músicas que mais gosta de cantar e ouvir. Após minutos em silêncio e com os olhos errantes, Renato revela suas favoritas: Por causa de você (composta por Dolores Duran e Tom Jobim, mas famosa na voz de Maysa), Travessia (de Milton Nascimento) e Espelho (João Nogueira).

“Só fui pegar gosto mesmo pela música depois dos 20 anos”. Foto por: Morena Ana Rolla/Reprodução
“Só fui pegar gosto mesmo pela música depois dos 20 anos”. Foto por: Morena Ana Rolla/Reprodução

Renato diz nunca ter sentido inspiração para compor músicas próprias, algo que amigos sempre pedem. Foi casado por mais de 10 anos com uma argentina, com quem teve um filho, hoje com 16 anos. No Brasil, tem filhas e netos.

Segundo Renato, a Argentina é mais hostil para apresentações de música ao vivo do que outros países da região, como o Brasil. Diz que os argentinos percebem os músicos como “um corpo estranho” em bares e restaurantes. “Para tocar aqui numa segunda-feira, precisa rezar três pai-nossos e duas ave-marias”. Fora isso, há donos de bares que cobram que os direitos autorais sejam pagos pelos músicos, prática que Renato critica.

Reclama da subida de preços no país (“agora eu ganho menos e está mais caro”) e da ostensiva fiscalização de agentes da Prefeitura em bares com música. Em abril deste ano, após a morte de cinco jovens em uma rave, as autoridades passaram a fiscalizar ativamente estabelecimentos, chegando até a interditar apresentações. Uma vez estava no Foynes, também em Palermo, e o dono apareceu dizendo, aos berros, que os fiscais da Prefeitura estavam chegando e era necessário esconder os instrumentos rapidamente. “Fiquei bravo e disse que não ia esconder nada, não sou ladrão”. Para ele, o presidente Mauricio Macri, no cargo desde dezembro de 2015, “é contra a cultura” e não se importa com os mais pobres. “Mas é culpa das pessoas, quem votou nele sabia disso”.

Se engana quem pensa que Renato sempre desejou seguir essa carreira. “Só fui pegar gosto mesmo pela música depois dos 20 anos”. Preferia o futebol. “Até hoje, se eu pudesse ter sido jogador, nem teria dado bola para a música”, diz ele, que passou por uma cirurgia na perna e nem sequer pode jogar uma bolinha com amigos hoje em dia. “Eu toco não sei por quê, por dom de Deus mesmo, não queria saber” de música.

Se ele sente falta do Brasil? Ao falar das saudades, Renato cita “aquelas reuniões que a gente fazia na rua” entre amigos, quando chegavam a varar a noite tocando na praia. “Muitas vezes saí para brincar e consegui trabalho”, quando o dono de algum estabelecimento os via tocar e pedia uma apresentação. Também menciona pratos que não encontra por aqui: carne seca com cebola, angu com quiabo, caldo de mocotó, sopa preparada com costela bovina. Os amigos lhe dizem que está complicado conseguir shows no Brasil, algo que tem de sobra do outro lado da fronteira. Volta vez ou outra para abraçar a família, mas descarta retornar para valer num futuro próximo. “Enquanto meu filho for menor de idade, quero ficar por perto”.

 

MATHEUS PIMENTEL é jornalista e participou do “Jornalismo sem Fronteiras”, que leva jornalistas e estudantes de comunicação a Buenos Aires para um mergulho de 10 dias no trabalho de correspondente internacional.

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