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Por entre as mesas de Buenos Aires

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Há quase meio século, servindo as mesas da churrascaria La Estancia, Lorenzo Perera, serviu turistas de todo o mundo e ganhou gorjetas de um ex-presidente do Brasil.

Ana Carolina Siedschlag

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É numa dessas ruelas ao redor do Obelisco, em meio ao caos turístico de cambistas ilegais, turistas brasileiros e vendedores de meias, que está uma relíquia do churrasco argentino.

Não é necessária uma fachada colorida, luzes néon ou panfleteiros à porta para ser um ponto turístico quase tão atraente quanto o Teatro Colón, logo ali ao dobrar a esquina. A parede de vidro mostra se tratar de um daqueles lugares em que prevalecem as tradições interioranas: fogo de chão, carvão da província de Chaco, espetos engatados que exalam um cheiro capaz de, assim como nos desenhos animados, fazer flutuar do chão.

Logo na entrada, o cardápio e uma placa de felicitações pelo Dia do Amigo. Duas cabines expostas ao público ladeiam a porta, cada qual com churrasqueiras e os espetos sendo manejados por especialistas.

O lugar é grande, mais de 300 pessoas podem almoçar simultaneamente. Nas paredes, homenagens às províncias argentinas e fotos dos clientes notáveis que já passaram por ali.

As origens do tradicional restaurante portenho

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O La Estancia iniciou seus trabalhos em 1962 pelas mãos do empresário Avelino Fernández. Três anos depois, tornar-se-ia um dos restaurantes mais frequentados pelos portenhos e também por muitos  pelos turistas.

Com uma demanda cada vez maior pelo número de clientes novos, chegaria à casa um jovem magro e sorridente que, através da indicação de um amigo, conseguiria uma vaga como ajudante de limpeza da churrascaria. “Eu era muito novo, não me queriam servindo as mesas”. Alguns meses de trabalho depois, estava desanimado: “Preferia trabalhar com gente.”. Não sabia o jovem que aquele seria seu local de trabalho pelos próximos 41 anos.

Num primeiro momento, o maître Lorenzo Perera pode parecer um tanto sério pela praticidade com que faz seu trabalho. Na cadência não lógica aos olhos dos clientes de primeira viagem, o senhor de 67 anos limpa, serve e recebe a clientela. O baile por entre as mesas apinhadas de turistas mostra que se está diante de um veterano do ramo.

Nascido na província de Missiones, o dinâmico senhor chegou à capital argentina aos 16 anos a procura de trabalho. A mãe, dona de casa, e o pai, trabalhador de construções, levaram-no a largar a escola após o primário para ajudar em casa. Da família de nove irmãos, apenas ele se acostumou à cidade grande. “Dois deles tentaram vir para cá. A capital tem outro ritmo. Eles não se acostumaram e voltaram.”.

 

As dificuldades do começo da carreira

Ana-Carolina-21.07.2014-12-PERFIL-300x200Na capital, Lorenzo trabalhou na limpeza de outros restaurantes até completar 18 anos, quando começou a trabalhar em uma pequena casa que fazia sobremesas para entrega. Por um generoso aumento do salário anterior, acabou indo parar no La Estancia.

“De garçom a chefe”, aponta o amigo e colega de trabalho, André Roberto. Lorenzo, de calça social e blazer, sorri, encabulado. Não gosta que o tratem como se fosse o patrão. Foi promovido a maître em outubro de 2013, quando a família Fernández deixou a administração do restaurante. Diz, porém, preferir o modo como as coisas aconteciam antigamente, quando, com a presença constante do chefe, todos se sentiam impelidos a trabalhar mais e melhor.

Mesmo que a média de idade dos 26 garçons do La Estancia seja de 15 anos conta que precisa chamar a atenção dos colegas constantemente. Costuma advertir apenas duas vezes; na terceira, fala com os novos administradores. Reclama que não se acham garçons como antigamente: “Nunca se anotava em bloquinhos. Hoje anotam e ainda erram o pedido.”.

Quando vai a um restaurante da concorrência, avalia de longe e não comenta nada, mesmo que seja mal atendido. O trauma com  contestadores vem de um episódio de quando era mais novo, no qual por pouco não foi vítima da ira esfomeada de um cliente insatisfeito. Viu-o levantar-se da cadeira e seguir em sua direção, bufando. “’Está brincando’, pensei.” Não estava. Discutiram até o cidadão ser posto para fora do restaurante. “Era um pouco esquentado.”.

Um cliente menos esquentado que lembra ter atendido frequentou a casa por alguns sábados do ano de 1975. Sentava-se no canto, perto de uma das churrasqueiras, e vinha sempre acompanhado da esposa, “que fazia o restaurante parar”. Um dia, lá pela quarta ou quinta vinda do cliente, uma turista brasileira chamou Lorenzo e perguntou-lhe se sabia de quem se tratava. Não sabendo, a turista revelou: “É o ex-presidente do Brasil, o Jango, que está exilado”. Impressionado, o garçom tentou puxar uma conversa na vinda seguinte do casal. O tom seco do ex-presidente o fez desistir da ideia. “Estava em um mal dia. Mas sempre deu boas gorjetas.”.

O orgulho de formar as duas filhas na universidade

Lorenzo é casado há 42 anos e tem duas filhas. A esposa, diz, sempre entendeu a carga horária pesada e o turno que virava a madrugada. O orgulho de ter formado as duas filhas, uma em Comunicação e a outra em Economia, transparece quando lembra da trajetória que o levou a formar uma segunda família no La Estancia.

“Esse lugar é parte de minha vida.”. Caso não fosse garçom, Lorenzo seria garçom, brinca. Quando percebe um casal parado à entrada a observar o cardápio, não hesita em explicar cada prato servido pelo restaurante. Aponta, fala portunhol e sorri: as poucas rugas ao redor dos olhos comprovam que o hábito não é novo.

 

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