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Pachamama: A mãe-terra de todos os povos

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Jovens descendentes indígenas lutam para resgatar as origens e a cultura dos povos originários das Américas

Jéssica Cruz

Matéria publicada na Folha de S. Paulo

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Rafael Moreira, indígena do povo Quechua-Aymara, cruzou a fronteira da Bolívia com a Argentina na década de 1930 para trabalhar na extração de minérios em Pirquitas, norte da Argentina, na província de Jujuy.

Em 1932, veio a Guerra do Chaco, o maior conflito armado do século XX na América do Sul. Bolívia e Paraguai lutaram pela região do Chaco Boreal, onde descobriram petróleo aos pés dos Andes. Após a morte de mais de 60 mil bolivianos e 30 mil paraguaios, a região foi anexada ao território paraguaio.

Rafael Moreira lutou na guerra até 1935, e, durante esses anos fora, seu filho Pedro Moreira nasceu na Argentina. “Como já estava mamando dessa cultura colonialista, meu pai foi defender a pátria. Por sorte ele voltou e meu tio também, mas muitos morreram sem saber que estavam defendendo apenas interesses econômicos”, conta Pedro.

“Nasci na Argentina, mas minha mãe e meu pai são bolivianos. Essa dualidade de países me fez entender algumas coisas: que as divisões dos países são estabelecidas por esse sistema colonial, é uma forma de nos dividirem e nos separarem.” Há pelo menos 500 anos, a colonização das Américas pelos europeus fez com que fronteiras fossem criadas entre os povos originários.

Resgate da história

004_IMG_0957-199x300A mais de 40 km da capital, na cidade de San Miguel, região conhecida como conurbano de Buenos Aires, mora hoje Pedro Moreira, já com 78 anos. Desde 1993, ele mantém uma biblioteca-museu dos povos originários na sala de casa. Um lugar simples, mas urbano, nada parecido com tribos ou comunidades indígenas. É lá que os indígenas residentes na cidade se encontram para palestras, bate-papos culturais e celebrações de datas comemorativas.

“Até então não prestava atenção nas lutas dos povos originários, mas quando comecei a pesquisar, encontrei uma enorme riqueza cultural. Essa pequena biblioteca nasceu como homenagem a minha mãe, que, apesar de não ter me criado em comunidade, me passou a cultura Quéchua.”

Dario Juarez, da etnia Guarany, frequenta a casa de Pedro para trocar conhecimentos sobre suas origens. Assim como outros migrantes, ele saiu há 20 anos de Misiones – um pedaço de terra da Argentina, entre o Paraguai e o Brasil – para tentar a vida em Buenos Aires. Começou então fazer alguns trabalhos voluntários com os indígenas quando descobriu que era guarani. “Minha mãe, Elida, me ligou um dia querendo saber o que eu estava fazendo na capital e contei que estava ajudando alguns indígenas. Foi então, que ela me contou sobre minha avó guarani, que viveu onde hoje é o Paraguai. E tudo começou a fazer mais sentido para mim.”

Depois disso, Dario se engajou ainda mais na causa dos povos originários. Fez diversas viagens de volta a Misiones e, inclusive, levou o sobrinho Diogo, 12 anos. “Conheci as Cataratas do Iguaçu e foi maravilhoso”, conta Diogo, muito curioso para saber sobre o restante do Brasil. Mas confessa que não se interessa tanto pela história de sua família. O povo guarani é o mais numeroso entre os povos urbanos de Buenos Aires. Já são sete comunidades comandadas e a que pertence Dario se chama “Kuarahy Ose Entereoi Te Peguara”, que significa “O sol nasce para todos”.

O cacique de sua comunidade, Adrian Ovando, tem apenas 46 anos e, apesar de ter vivido em comunidade até os 7 anos, sofreu tantos preconceitos que

IMG_1056-300x203renegou suas origens e viveu por muitos anos tentando esquecer e negando que era indígena. Até que conheceu sua esposa, que o fez enxergar que o encontro de si mesmo o traria paz e dessa forma se sentiria completo. “E hoje passo para meus três filhos de que eu estava errado em não querer me reconhecer como indígena. E agora estou planejando levá-los até Resistencia, em Chaco, onde fica a comunidade em que cresci”. A cidade argentina fica na fronteira com o Paraguai.

Como representante de 28 famílias guaranis, uma comunidade urbana, Adrian luta por um espaço de terra para que vivam na cidade, mas unidos geograficamente. Hoje, como moram em lugares distintos, as famílias se reúnem pelo menos a cada 3 meses no Centro Cultural da Universidad Nacional de General Sarmiento, onde também acontecem aulas das línguas maternas, como o guarani e o quéchua, aulas de música tradicional e assim uma identidade dos povos vai se construindo novamente.

Discriminação

“Minha mãe ia muito as missas da Igreja Católica e eu sempre a acompanhava quando pequeno. E achava curioso o momento da comunhão, quando todos se levantavam e iam para o centro da igreja. Um dia perguntei para minha mãe se podia comungar também e ela me disse que sim, só teria que me confessar primeiro. Havia uma fila e quando chegou minha vez, o padre começou a fazer perguntas que normalmente se faz, como qual é seu pecado, e eu disse que não sabia. O padre deu a volta, me agarrou pelas mãos e me tirou da Igreja.”

A história vivida por Pedro, quando ainda criança, é um reflexo do preconceito com os povos originários. Os cinco irmãos da família Moreira não aprenderam a falar a língua materna, porque a mãe, Crescencia, achava que os filhos sofreriam discriminação se alguém os ouvisse falando uma língua estranha. “Nós conseguíamos entender quando nossa mãe falava na língua materna, mas não sabíamos falar.”

Durante a colonização, os povos originários eram proibidos de fazer os rituais ancestrais, considerados satânicos. Por exemplo, a festa Inti Raymi, quando é comemorado o solstício de inverno, em junho no hemisfério sul, foi proibida. “Como coincidia com o período da festa católica de San Juan, os povos indígenas santificaram a festa de Inti Raymi para continuar festejando sem serem perseguidos”.

A noite mais larga e o dia mais curto, quando um novo ciclo começa para os povos indígenas só pode ser comemorada hoje na Argentina, porque em 1994, há apenas 10 anos, os povos originários conseguiram incluir o Artigo 75, Inciso 17, na Constituição Nacional, reconhecendo a existência da etnia e da cultura dos povos indígenas.

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Direitos para quem?

“Reconocer la preexistencia étnica y cultural de los pueblos indígenas argentinos. Garantizar el respeto a su identidad y el derecho a una educación bilingüe e intercultural; reconocer la personería jurídica de sus comunidades, y la posesión y propiedad comunitarias de las tierras que tradicionalmente ocupan; y regular la entrega de otras aptas y suficientes para el desarrollo humano; ninguna de ellas será enajenable, transmisible, ni susceptible de gravámenes o embargos. Asegurar su participación en la gestión referida a sus recursos naturales y a los demás intereses que los afectan. Las provincias pueden ejercer concurrentemente estas atribuciones.”

A reforma da Constituição Nacional Argentina aconteceu durante o período de Carlos Menem à frente da presidência do país, mas a luta pelos direitos dos povos originários se arrastava por muitos governos. Na época, foi criado o programa PPI (Participação Política Indígena), em que, pela primeira vez, o desenvolvimento de uma lei foi pensada de baixo para cima. O problema é ainda não há uma regulamentação e, por isso, o seu cumprimento não é fiscalizado.

Somos todos originários

IMG_1067-1-300x199Dailos Suárez é cineasta formado pela Universidad de Belgrano, em Argentina. Saiu das Ilhas Canárias para fazer faculdade na Espanha e, em 2011, decidiu vir para Argentina fazer um intercâmbio e se graduar. Foi quando conheceu a Quechua-Ayamara, Sandra Calamullo, em Buenos Aires, e da história dela surgiu o documentário Runa Kuti, Nativos Urbanos. “Para mim os indígenas eram só os que estavam no meio da floresta, assim como é passado pelas escolas, pela televisão e pelo cinema. Foi muito chocante ver uma pessoa, no meio da cidade, me dizer que é indígena”, conta.

Ao pesquisar sua própria árvore genealógica, ele descobriu que, até o ano de 1400, antes da colonização, toda sua família tem origem das Ilhas Canárias, onde naquele período vivia a etnia indígena Guanches. Com exceção de um negro, que foi como escravo para Ilhas Canárias durante o período de colonização. “A gente, das Ilhas Canárias, tem traços diferentes das pessoas da Espanha. Eu, por exemplo, quando morei em Madrid, me perguntavam se eu era cubano ou argentino, as pessoas não nos reconhecem como espanhóis, sendo que legalmente somos.”

A produção do documentário de quase 40 minutos foi feita em um ano. E para Dailos, a experiência mais marcante foi conhecer a comunidade de Punta Querandí, um sítio arqueológico onde vários povos indígenas de todo o mundo se reúnem, a 50 km da cidade de Buenos Aires. Desde 2010, há conflitos com a empresa EIDICO, de empreendimentos imobiliários.

“Quando você vai para lá é uma energia muito forte, não dá para explicar. É muito simples, mas é algo muito verdadeiro, porque são indígenas da África, da Europa, do Brasil, de todo lugar. Você fala com outra pessoa, reparte a comida, faz rituais à mãe terra, a pachamma… Parece que é um documentário para o mundo, mas na verdade foi um trabalho interior registrado em vídeo.”

 

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