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Mercosul 25 anos – uma percepção diária

Operário do setor automobilístico, maior destaque da integração econômica, avalia que o bloco não tem impacto direto na vida da população

SARA ABDO

DE BUENOS AIRES

 

Sexta-feira pré-aniversário de bicentenário argentino. Com cara de sábado, a cidade está tranquila e Javier Aparício está bastante disponível para sair de sua casa, em Pacheco, região norte da grande Buenos Aires onde trabalha em um polo industrial automobilístico. Aparício transita com frequência entre a região de sua casa e o entorno da estação Congresso de Tucumán, linha D verde do metrô. Ali vive seu filho de quatro anos com a mãe, uma das últimas namoradas de Aparício.

No carro imundo e cheio de carrinhos de brinquedo, Aparício conta que já trabalhou como operário em fábricas de distintos setores. Aos 45 anos, mostra-se animado, embora frequentemente problematize o sistema no qual vive. “O Mercosul só vai dar certo mesmo quando mudarmos o sistema dos países. Se isso não acontecer, o bloco continuará sendo comandado pelo Brasil, que por ser o membro mais forte e mais independente, vai se impor mais”.

Funcionário na Volkswagen desde 2006, chegou à unidade fabril para unir-se a outros 2500 funcionários na seção de produção, quantidade que se manteve praticamente a mesma durante a crise econômica de 2009. Quando em 2011 a Volkswagen adicionou o modelo de caminhonete Amarok aos produtos da fábrica de Pacheco, o número de funcionários bateu os 5 mil. Havia uma produção diária de 420 unidades. Em 2015 as vagas de emprego começaram a cair e deve chegar aos 3800 até o fim de 2016. No médio prazo, a produção diária deve cair para 350 unidades.

Em tempos de ritmo normal de produção, os operários da Volkswagen em Pacheco se alternam entre turnos matutinos, vespertinos e noturnos, sempre de 8 horas. O salário de Aparício é 18 mil pesos, já incluso hora extra atribuída à semana em que trabalha a noite. Com a suspensão do turno da noite, em razão da queda na produção, o salário caiu para pouco mais de 11 mil pesos. Os custos, no entanto, seguem os mesmos. Uma casa alugada dividida com um amigo custa, a cada um, 3.300 pesos. A Aparício ainda lhe falta pagar suas contas e a pensão alimentícia do filho.

 

El Mancha no Mercosul

De aparência jovem, talvez por sua disposição em falar com todos sobre tudo, Aparício conta que seu apelido é “El Mancha”, uma referência aos cabelos brancos que lhe surgiram no topo da testa ainda aos 17 anos de idade. “Na fábrica dizem que meu nome é Javier El Mancha Aparício”.

Javier Aparício, o El Mancha, procura uma das reportagens em que sua história como operário ilustrou a crise econômica.

“El Mancha” finalizou o ensino médio aos 20 anos de idade, no início da década de 90, quando Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai firmaram o Tratado de Assunção para formalizar o Mercosul. Sem ingressar no ensino superior, tornou-se operário em 1992 e desde então passou por inúmeras fábricas de distintos setores da economia argentina. Como se sente impactado pelo Mercosul? “O bloco mudou pouca coisa na nossa vida operária do dia a dia. Não há vantagem ou desvantagem que se sobressaia”.

Ainda que reconheça o potencial de uma integração econômica para fomentar as oportunidades de trabalho, Aparício questiona: “em que sentido trabalhar mais vai aumentar nossa qualidade de vida?”

Num primeiro momento o Mercosul movimentou o mercado interno com as importações de produtos brasileiros. O problema foi que isso destruiu as indústrias nacionais, por exemplo a têxtil, que nunca pode competir com a indústria brasileira. Segundo Aparício, a Alpargata, empresa de calçados e artigos esportivos, trouxe muitos artigos fabricados no Brasil, ainda que a empresa tenha unidade fabril em ambos os países. No médio prazo, a falência da indústria têxtil tradicional deu brecha para a criação de empresas informais do setor, com uso de mão de obra escrava.

O movimento do governo e empresariado argentino em direção a Aliança do Pacífico, pacto comercial entre Chile, Colômbia e Peru, não passa despercebido por El Mancha. Para ele, sob o ponto de vista do setor automobilístico, o movimento é uma convergência interessante, já que os países andinos não têm indústrias como a Volkswagen.

Consta na lista de contatos de Aparício alguns militantes torturados durante a ditadura cívico-militar argentina (1976-1983). Depois de formar-se no ensino fundamental durante o período de repressão, nos anos 80 o operário se dispôs a explorar seus limites. Perdeu amigos para as drogas e para a AIDS e, a partir daí, decidiu fazer reivindicações de outra maneira.

É um dos militantes do Sindicato de Mecânicos y Afines del Transporte Automotor (SMATA), ainda que não esteja em absoluto acordo com seus companheiros. Aparício é eventual redator do La Izquierda Diario, jornal digital com edição impressa uma vez por semana. Por ser politizado, a gestão da Volkswagen o transferiu para a parte de logística, a fim de evitar que ele conversasse muito com os demais operários. O efeito dessa mudança, no entanto, é que Aparício acredita cada vez menos no impacto da crise econômica brasileira sobre indústria automobilística argentina.

 

 

Crise? Que crise?

A produção da Volkswagen em Pacheco é exportada para Colômbia, Equador, Chile, Oceania, Leste Asiático, além do Brasil. Por que então, indaga Aparício, os empresários insistem que a fábrica pode fechar se não houver otimização de recurso e pessoal? Apesar das exportações gerais para o Brasil, em sua maioria exportação automotriz, terem caído 27% em 2015, o operário está convencido de que o dano não é tão grande a ponto de se considerar o risco de encerramentos das atividades. “A produção da Volkswagen está muito mais inserida no mundo do que direcionada para o Mercosul. Não faz sentido a pressão empresarial sobre os operários”.

Mesmo sem sentir o Mercosul em seu dia a dia, Aparício compreende a crise política por qual passa o bloco. “A política é economia concentrada, e quando se quer mudar o rumo da concentração, troca-se a política”. Se o modelo econômico está em crise, é de se esperar que a política também esteja.

 

SARA ABDO é jornalista e participou do “Jornalismo sem Fronteiras”, que leva jornalistas e estudantes de comunicação a Buenos Aires para um mergulho de 10 dias no trabalho de correspondente internacional.

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