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Madrid para os amantes do cinema alternativo

Madrid conserva muitos cinemas de rua com programação alternativa. Connheça um pouco dos Cines Dore, Renoir e Golem e as resenhas de Una Giornatta Particolare, El Porvenir e La Tortuga Roja

BÁRBARA GARCIA
DE MADRI

 

Desde 1913, com o surgimento de Hollywood, a industrialização do cinema e a globalização, é comum a presença de cinemas em shoppings e o consumo de filmes de forma comercial. Em Madrid a realidade é um pouco diferente. Como uma das maiores capitais culturais do mundo, a cidade ainda conserva cinemas de rua que chegam a receber mais de 1.200 expectadores só nos fins de semana e exibem filmes alternativos, tanto históricos quanto atuais. Nos dez dias em que estive na capital espanhola, pude conhecer três deles: o Cine Dore, o Cine Renoir e o Cine Golem. Compartilho aqui a experiência e as resenhas dos três filmes assistidos.

Cine Dore

Foto 1 Cine Dore
Detalhe da fachada do Cine Dore durante a noite. Crédito: Bárbara Garcia
Fachada do Cine Dore nos anos 1920. Crédíto: Site do Ministério da Cultura da Espanha
Fachada do Cine Dore nos anos 1920. Crédíto: Site do Ministério da Cultura da Espanha

 

Um dos mais tradicionais cinemas de rua de Madrid é o Cine Dore, localizado no número 3 da rua Santa Isabel, a mesma do restaurante “Tomates Verdes Fritos”, uma referência ao filme estadunidense homônimo de 1981. O cinema foi inaugurado em 19 de dezembro de 1912 e na época era chamado de “salão”. As projeções aconteciam em

Foto 3 Piano
Piano que era usado nos anos 20 para fazer a musicalização dos filmes. Crédito: Bárbara Garcia

uma única sala com capacidade para 1.250 pessoas. Os filmes, até então mudos, eram acompanhados por orquestras ou apresentações de piano, que ainda está conservado e hoje serve como testemunho de uma época.

O prédio foi reconstruído em 1923, com projeto do arquiteto Crispulo Moro Cabeza, como conta o site do Ministério da Cultura da Espanha. Atualmente é mantido pela Filmoteca Espanhola, e tem o objetivo de exibir e conservar filmes históricos de várias partes do mundo, principalmente a Europa.

Cheguei lá por volta das 21 horas do dia 15 de janeiro, em um frio de 1º grau C, segundo a previsão do tempo. Estava interessada em assistir o clássico italiano/canadense Una Giornatta Particolare, com Sophia Lauren e Marcello Mastroianni como par romântico. Cerca de 40 pessoas, a maioria de meia idade para cima, faziam fila do lado de fora da lateral do cinema para comprar as entradas, que custam 2,50 euros, algo equivalente a dois capuccinos pequenos aqui em Madrid, mas que somam 8,87 em reais. Pedi a uma funcionária para comprar as entradas pelo lado de dentro, já que não posso ficar muito tempo em pé por conta das dificuldades de locomoção e do andador que utilizo como apoio para caminhar. Ela recomendou que eu esperasse por alguns minutos e chamou seu chefe. Pediu desculpas e disse que era apenas uma funcionária obrigada a seguir as ordens. O chefe enfim chegou, foi gentil, eu me apresentei como brasileira. Comprei as entradas com a mulher da bilheteria e depois sentei em uma das cadeiras da cafeteria do cinema, que também conta com uma livraria especializada em títulos sobre a sétima arte, já fechada naquele horário.

Observei o local, tirei algumas fotos do ambiente, e logo fui repreendida por uma das funcionárias, que afirmava que as fotos incomodavam os clientes. Respeitei a recomendação. Logo as pessoas fizeram fila para entrar na sala, que não tinha lugares marcados.

O filme “Una Giornatta Particolare” (sem spoilers!)

A produção é um clássico do cinema italiano/canadense de 1977, dirigido por Ettore Scola, do gênero drama. Sophia Lauren e Marcello Mastroianni, chamados por alguns de “estrelas maiores do cinema italiano” são os protagonistas. Com certeza muitas resenhas sobre este filme já foram e serão escritas. Minhas observações são pontuais, levando em consideração que todo filme é também um discurso construído, e por isso, é um acontecimento, como diria o filósofo francês Michel Pecheux, porque depende do contexto em que está sendo dito e compreendido.

Por conta de tudo isso, como jornalista e brasileira, assistir um filme italiano com legenda em espanhol em um dos cinemas históricos de Madrid é uma experiência única. As possíveis dificuldades com o idioma não foram tão perceptíveis, talvez pela minha familiaridade com a língua espanhola ou porque a narrativa visual do filme é muito elaborada. Expressão impecável dos atores, trilha sonora muito representativa da época, fotografia cuidadosa e sensível, cada quadro pensado para caracterizar o ambiente político e a paisagem emocional dos personagens.

O clássico italiano/canadense mostra os efeitos da ditadura na intimidade das pessoas. Crédito: divulgação
O clássico italiano/canadense mostra os efeitos da ditadura na intimidade das pessoas. Crédito: divulgação

A tradução do título – “Um dia especial” –  já diz muito sobre o filme e a sociedade italiana da época. O dia é 6 de maio de 1938, em que Adolf Hitler é recebido em Roma para oficializar suas alianças com Benito Mussolini, poucos dias antes do início da Segunda Guerra Mundial. Muitas casas de famílias italianas tinham as bandeiras do partido nazista asteadas em suas fachadas e milhares de pessoas saíram as ruas para testemunhar o momento, entendido na época como símbolo de poder e honra para a Itália.

Antonietta, a protagonista, é uma mulher casada, mãe de seis filhos, que vive o paradigma machista. Ela é tratada cotidianamente com grosseria pelo marido, se sente traída, desvalorizada. É a representação da mulher que só existe para parir e servir como empregada. Depois que o marido e os filhos saem de casa para prestigiar a chegada do füher, ela decide cuidar do pássaro de estimação da família, que escapa para a casa do vizinho, Gabriele.

Gabriele é um homem de meia idade, antifascista, que vive sozinho e precisa enfrentar os olhares e desconfianças dos vizinhos quanto ao seu caráter, já que a moral da época só respeitava um homem se ele fosse “pai, marido e soldado”, como Gabriele mesmo afirma. Ele recebe Antonietta e rapidamente se estabelece entre eles uma atração sexual, que não pode ser concretizada pelas pressões sociais a que eles estão submetidos. De forma bastante sensível e inteligente, o diretor Scola mostra os efeitos que a ideologia totalitária produz no mundo interior e afetivo dos personagens. A solidão, o abandono, o medo, a culpa. O desejo e o afeto são ali as únicas armas para lutar contra todas as opressões, tanto as sociais e políticas, quanto as que se refletem no mais íntimo do ser dessas pessoas. Somente alguém que já viveu um amor intenso que não pôde ser concretizado, é capaz de compreender as sutilezas e nuances dessa obra prima. E assisti-la no ano em que a Espanha completa 40 anos de democracia é uma grande oportunidade para compreender a violência das ditaduras.

Cine Golem

 

Fachada do Cine Golem, um dos poucos com elevadores
Fachada do Cine Golem, um dos poucos com elevadores

Uma das histórias mais surpreendentes que descobri em Madrid foi a do Francisco “Paco” Vazquez, funcionário do Cine Golem da rua Martín de los Hejos há 27 anos. O cinema existe desde a década de 1980 e se dedica a exibir filmes alternativos atuais de todo o mundo, indianos, iugoslavos, colombianos, mas os brasileiros não são comuns, segundo Paco. Seu filme preferido é “Underground”, iugoslavo dirigido por Endir Kusturica em 1995.

Detalhe da calçada do Cine Golem, com nomes de cineastas e atores. "Almodóvar é grande amigo da casa", segundo Paco Vazquez. Crédito: Bárbara Garcia
Detalhe da calçada do Cine Golem, com nomes de cineastas e atores. “Almodóvar é grande amigo da casa”, segundo Paco Vazquez. Crédito: Bárbara Garcia

 

 

Ele conta que o grande cineasta espanhol Pedro Almodóvar é um importante amigo da casa e já esteve lá pessoalmente várias vezes. Seu filme “O grande ditador” está em cartaz ininterruptamente há 17 anos, esse o maior record de tempo de exibição do local. Outra personalidade importante que já mostrou sua cara lá foi Quentin Tarantino, quando ainda não era muito famoso na época de lançamento do seu primeiro filme, Cães de Aluguel, que é a película tarantinesca preferida de Paco.

Paco é do tipo que guarda experiências incríveis na memória, pelo menos do ponto de vista de um amante de cinema. Conta que em 1997, o cineasta David Lynch, famoso por produções como “Blue Velvet”, esteve no Golem para a estréia de “Lost Highway”, ou “La carretera perdida” em espanhol. Neste dia, muitos jornalistas estavam presentes para fazer as primeiras críticas. Paco acidentalmente colocou os rolos do filme na ordem errada, o rolo 4 no lugar do 6, e só percebeu depois. Isso mesmo, no dia da estréia na Espanha de um dos mais conhecidos filmes do cinema americano, as pessoas assistiram algo completamente diferente.

Paco Vazquez trabalha no cine Golem há 27 anos. Já esteve com Almodóvar e projetou filmes de David Lynch. Crédito: Bárbara Garcia
Paco Vazquez trabalha no cine Golem há 27 anos. Já esteve com Almodóvar e projetou filmes de David Lynch. Crédito: Bárbara Garcia

O Cine Golem recebe mais de 1.200 pessoas por dia, com um movimento ainda maior nos fins de semana. É um dos poucos locais em Madrid com elevadores e banheiros adaptados para pessoas com deficiência. Regularmente, recebe críticos de cinema, cineastas e jornalistas para a gravação do programa de TV “Dia de Cine”, da RTV, a rádio e televisão estatal da Espanha.

 

 

 

 

 

 

 

 

O filme “El Porvenir”

 

Filme francês lançado em 2016 e dirigido pela cinesta Mia Hansen Love, em cartaz no Cine Golem desde setembro do ano passado, e está em seus últimos dias de exibição. Foi definido pela crítica do jornal espanhol El País como um filme que mostra “com sutileza, verdade e grande controle narrativo uma interpretação extraordinária que traduz a crise intelectual em tensão muscular e mostra um presente em que as humanidades são desrespeitadas”. Concordo com esta avaliação. O filme conta a história de Nathalie Chazeaux, interpretada por Isabelle Hupert, que é professora de filosofia de uma universidade e precisa lidar com angústias da vida adulta, como a descoberta de traição por parte do marido e as crises psicológicas de sua mãe idosa.

Nathalie é inspirada na mãe da cineasta, que já teve a experiência de criar personagens inspirados em seus familiares, como em Éden, que faz referência ao seu irmão, novamente citando o El País. As interpretações, o enredo, a fotografia e a trilha sonora – com músicas de Woody Guthrie, cantor folk que influenciou Bob Dylan e uma nova versão do tema do filme Ghost, Unchainged Melody – trazem as emoções humanas, as angústias e as dúvidas de uma forma contida e ao mesmo tempo intensa, sem muitas idealizações. Traduzem as solidões existenciais de um modo bastante peculiar, como só o cinema francês consegue fazer.

Cine Renoir

FOTO 8 CINE RENOIR
O Cine Renoir se dedica aos filmes alternativos atuais e tem muitas unidades em Madrid. Crédito: Bárbara Garcia

O Cine Renoir, também na rua Martin de Hejos, 12, se dedica aos filmes alternativos atuais. A funcionária Carmen “Mamen” Fernandez, que trabalha há 20 anos na mesma empresa, conta que o local recebe cerca de 1.200 expectadores aos sábados e domingos e 500 de segunda a sexta-feira. Ela foi gentil, mas não quis tirar fotos. Contou que lá são exibidos filmes de muitas partes do mundo, e os brasileiros tem sido mais comentados ultimamente.

 

 

 

Resenha de La Tortuga Roja

Comprei um ingresso para a sessão das 20:45 do filme “La Tortuga Roja”, ou “A Tartaruga Vermelha”, em português. É uma animação franco-belga japonesa do diretor Michael Dudok de Wit. Mais de quarenta minutos antes do filme começar, só havia sobrado uma única poltrona na primeira fila, em uma sala com capacidade para cerca de 60 pessoas. Havia gente de idades variadas, desde jovens de 20 e poucos anos até idosos.

A grande procura se justifica: a animação ganhou o prêmio em Cannes como Melhor filme de Animação segundo o Círculo de Críticos de Cinema de São Francisco e é uma das 27 pré-candidatas ao Óscar nessa categoria.

Conta a história de um homem sem nome que se vê completamente perdido em uma ilha e é obrigado a enfrentar a dor, fome, frio e sofrimento, até perceber que ele mesmo é parte integrante da natureza. Nesse momento ele encontra uma grande tartaruga vermelha que assume a forma humana, com quem começa a ter contato bastante sensível.

Eles começam a viver uma grande história de amor, e toda a narrativa é contada sem nenhum diálogo, apenas com os desenhos, imagens, gestos e trilha sonora. Por isso a experiência se torna ainda mais emocional. Acredito que a não existência dos diálogos justamente faz com que o espectador tenha um mergulho para dentro de si mesmo, acessando sentimentos e significados que são seus, particulares e únicos.  

O site espanhol  Fotogramas, especializado em cinema, elencou 5 motivos imperdíveis para assistir “La Tortura Roja”: porque é a primeira produção internacional do estúdio Ghibli, porque bebe das tradições franco-belgas de animação, relembrando os desenhos de Tin Tin; porque é um forte conto de amor à natureza, porque demonstra muito bem como é possível contar uma boa história sem diálogos e, finalmente, porque defende a importância dos pais e da família na formação de um ser humano.

Realmente uma experiência inesquecível.

Bárbara Garcia é jornalista e participa do programa “Jornalismo Sem Fronteiras”, que leva jornalistas e estudantes de jornalismo a Madrid para um mergulho de 10 dias no trabalho de correspondente internacional.

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