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Gritos e sussurros: a história da ditadura argentina pelas lentes de um fotógrafo

Em meio ao terror do regime, sobrevivente dos anos do golpe militar conseguiu deixar sua marca na história

KETLYN ARAÚJO
VICTOR LIMA GOMES

DE BUENOS AIRES

 

FOTO 1 ESMA Ethel Rudnitzki
Vindos principalmente do interior, os estudantes que frequentavam a ESMA viam ali uma oportunidade de exercer outras funções além da carreira naval, como trabalhos de torneiro mecânico e eletricista. Foto por: Ethel Rudnitzki

Victor Basterra é um fotógrafo argentino. Na década de 1980, ele falsificou mais de uma centena de documentos. Victor Basterra era um estelionatário. Ele ajudou a ditadura a confiscar os bens de presos políticos. De tanto confiscar bens, Victor Basterra permitiu ao regime montar duas imobiliárias.Victor Basterra era um preso político. Ele foi torturado por mais de 20 horas, teve duas paradas cardíacas e passou cinco anos em cativeiro.

Victor Basterra não mudou de ares. Trabalha no mesmo lugar onde ficou preso: no Espacio Memoria y Derechos Humanos, antiga Escola de Mecânica da Armada (ESMA). Hoje um centro administrado pelo governo federal, pela cidade de Buenos Aires e por entidades de direitos humanos, o espaço funciona como museu e promove debates sobre a ditadura militar da Argentina.

Até 2007 a ESMA era propriedade das Forças Armadas. Em 2010, o então presidente Nestor Kirchner ordenou a saída dos militares do local. Foto por: Ethel Rudnitzki
Até 2007 a ESMA era propriedade das Forças Armadas. Em 2010, o então presidente Nestor Kirchner ordenou a saída dos militares do local. Foto por: Ethel Rudnitzki

Entre 1924 e 1976, a ESMA abrigava as histórias de oficiais da Marinha. Depois disso, virou palco das atrocidades que eles fizeram a presos políticos, como Victor Basterra. Além dele, milhares de desaparecidos passaram pelos Centros Clandestinos de Detenção (CCD). Ali operava a maior máquina de sequestro, tortura e inteligência do país.

“Capucha” era o nome dado às divisões de madeira dentro dos Centros de Detenção, onde os presos tinham de permanecer alinhados - lá funcionava também a maternidade clandestina. Foto por: Ethel Rudnitzki
“Capucha” era o nome dado às divisões de madeira dentro dos Centros de Detenção, onde os presos tinham de permanecer alinhados – lá funcionava também a maternidade clandestina. Foto por: Ethel Rudnitzki

Os detentos ficavam presos no Casino de Oficiales, um lugar apertado, de instalações precárias, lúgubre, onde cerca de 30 mulheres grávidas deram à luz e tiveram seus bebês roubados e entregues a outras famílias – uma prática característica da ditadura. Atrás de seus netos e filhas, mulheres formaram a organização Abuelas de Plaza de Mayo.

Assim como as avós, as mães que tiveram seus bebês sequestrados e que não estavam presas criaram sua própria associação, Madres de Plaza de Mayo. A solução que os grupos encontraram para driblar as imposições da ditadura – o direito de manifestação, por exemplo – foi fazer caminhadas em torno da Plaza de Mayo, praça mais famosa de Buenos Aires.

Atualmente, essas são as principais entidades de direitos humanos que compõem o espaço da antiga ESMA. Elas chamaram a atenção da imprensa internacional durante a Copa do Mundo na Argentina, em 1978, ao denunciar o terrorismo de Estado que era praticado pelo país.

A presidente das Abuelas, Estela de Carlotto, foi indicada ao Nobel da Paz em 2010. Foi ela quem fundou o movimento, após a morte da filha e o desaparecimento do neto, encontrado depois de 36 anos. À época, o grupo não dispunha de métodos sofisticados para chegar à verdadeira identidade dos bebês. Agora, no entanto, possuem um dos maiores bancos de dados genéticos do mundo.

A violência da ditadura foi maior entre 1976 e 1977, deixando milhares de desaparecidos, em sua maioria jovens de 18 a 32 anos. Foto por: Ethel Rudnitzki

Muitas pessoas que têm dúvidas sobre sua origem procuram o banco de dados da organização, que encontrou mais um neto no último dia 29 de junho, o de número 120. Recentemente, levantaram-se suspeitas de que os filhos da dona do jornal Clarín Ernestina Noble haviam sido, na verdade, entregues a ela por agentes do regime. As acusações foram insufladas pelo kirchnerismo e desmentidas em 2011 por um teste de DNA.

As descobertas da genética não são as únicas responsáveis pelo desfecho de um capítulo que a Argentina não consegue esquecer. Victor Basterra, o fotógrafo favorito dos militares, desempenhou papel importante em traçar a linha dessa história. Uma de suas obrigações era tirar fotos dos presos políticos recém-chegados. Escondido, ele fazia uma cópia a mais do que lhe era exigido e guardava consigo. Quando foi solto, possuía um verdadeiro acervo daquilo que acontecia na ESMA.

À família de Victor ocorreu algo semelhante ao que sucedia com a maioria dos desaparecidos à época. Sua mulher e filha foram sequestradas junto com ele e levadas ao centro de detenção. Elas foram soltas pouco tempo depois, o que não impediu os torturadores de submeter Dora Laura Seoane, esposa de Victor, a sessões de choque elétrico.

Com a redemocratização do país, em 1983, a lente do fotógrafo pôde desfrutar de algo que já lhe era estranho. Algo que nem de longe lembra o seu antigo habitat, onde a fortuna fez por bem colocar uma pessoa para registrar o que os ditadores queriam esconder. Mas a quem não foi possível imortalizar, em um clique, os gritos e sussurros que só a liberdade desconhece.

 

KETLYN ARAUJO E VICTOR LIMA GOMES são jornalistas e participaram do “Jornalismo sem Fronteiras”, que leva jornalistas e estudantes de comunicação a Buenos Aires para um mergulho de 10 dias no trabalho de correspondente internacional.

 

 

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