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As várias voltas que o mundo dá em dois dias

Encontrar e vivenciar algo completamente fora do esperado e a sensação das inúmeras voltas que o mundo pode dar em um único dia foram, e ainda são, as minhas principais razões para trabalhar com jornalismo. Ainda me impressiona como um dia pode ser completamente diferente do que eu esperava, e me surpreende como as vezes esqueço disso. As experiências vividas nas últimas 48 horas novamente me lembraram do que me fez me apaixonar por essa atividade, e o quanto eu sou grato por poder vivenciar isso ao máximo.

Foi quase impossível descansar na noite de sexta-feira. O sono era constantemente afastado pela expectativa de finalmente ter acesso a uma villa, como são chamadas as favelas argentinas. Ver de perto toda essa situação de miséria, violência, drogas e todo o pacote incluso nas zonas de extrema pobreza era algo que me fascinava antes mesmo de embarcar para cá.

De fato era o meu principal objetivo. Era nesse contexto que a minha principal pauta, o consumo de paco nas villas, está inserido. O foco era a Villa 31, encravada na região central de Buenos Aires e a mais famosa da Argentina. Desde a primeira conversa sobre os projetos de matérias, a Claudia havia deixado claro que eu não entraria sem o acompanhamento de alguém. O mesmo mantra foi mantido por todos os demais profissionais que entrevistamos durante as atividades. A sorte foi termos a entrevista com a Sylvia logo no segundo dia. Foi ela quem passou o contato de César, um morador e dono de uma rádio da comunidade que já havia lhe auxiliado em reportagens no local.

Na tarde de sexta-feira, liguei para ele, que de prontidão se mostrou disposto a ajudar no que fosse necessário.

Marcamos o encontro para o dia seguinte, às 14h30min, em uma estação de ônibus próximo à villa. Fui eu, Jack, também responsável pelo curso, Isabela e Sayonara, que também estão produzindo reportagens de contexto social. Claudia nos acompanhou durante os 20 minutos do trajeto entre nosso hotel e o ponto de encontro, alimentando, ao mesmo tempo com brincadeiras e conselhos, a nossa já enorme expectativa de adentrar em uma das áreas mais críticas da capital portenha.

Superamos um pequeno contratempo do local onde deveríamos estar e logo vimos César caminhando em nossa direção. Nos apresentamos e expusemos quais os nossos objetivos, ele não disse muito no momento, apenas que estava tudo bem. Seguimos por dentro do terminal de ônibus, logo desembocando em uma das entradas da Villa 31.

Fomos recepcionados por um tipo de feira livre, onde se comercializava praticamente tudo que se possa imaginar. Em meio às centenas de tendas alaranjadas, azuis e amarelas, bancadas ofertavam aparelhos eletrônicos, ferramentas, roupas, comidas, relógios, mesas, até mesmo privadas poderiam ser adquiridas no local. O aspecto usado de algumas ofertas nos fez imaginar a procedência e a forma que aqueles produtos chegaram até ali, mas mesmo assim seguimos em frente.

A chuva que castigou Buenos Aires por quase toda a semana criou um acumulo de lixos e lama em meio as vielas, fazendo redobrar a atenção por onde estávamos pisando. A rádio e casa de César ficava próxima à entrada, de frente para a feira. Sentamos em poltronas e puffs na sala de estar e começamos a conversa. Logo no início apareceu Jala Jala, um amigo de César que também iria nos acompanhar durante aquela visita.

Ficamos cerca de 30 minutos na casa conversando. César nós explicou o contexto da Villa 31, como ela cresceu até chegar aos atuais 90 mil moradores, as situações de violência e como era a rotina naquele local. Com Jala Jala, a conversa se direcionou mais ao paco, forma de produção, venda e os reflexos da droga na comunidade.

Depois partimos para conhecer algumas regiões da villa. César nos levou até uma rua de comércio, próxima a sua casa e à entrada. Era uma via estreita, com espaço para apenas um carro. A cada passo uma nova observação, uma nova surpresa. Não havia como tirar os olhos dos pequenos barracos de cimento, pintados em cores berrantes, que se acumulavam um em cima do outro. A arquitetura e engenharia civil feita à facão possibilitava, de forma que só pode ser descrita como milagrosa, que pequenos prédios de cinco ou seis andares não caíssem uns sobre os outros.

O cheiro de carne assada, lenha queimando e frituras tomava conta de todo o ar, formando um cheiro único e difícil de associar com qualquer outra coisa que havia experimentado antes. O comércio naquela viela também beirava ao surreal. Peixes congelados eram expostos a menos de um metro de um homem que comercializava filhotes de coelhos. Uma barraca produzia roscas e carnes, ao lado de um salão de beleza exclusivo para homens e próximo a comércio de eletrônicos e mais comida.

Durante todo trajeto pedi a Cesar para me apresentar um paqueiro, nome dado aos usuários da droga, mas nenhum estava disposto a conversar. Aquilo para mim foi como um balde de água fria. Eu havia entrado naquela comunidade com a certeza que sairia com o relato de ao menos um deles. Ficamos pouco mais de duas horas no local e rumamos para a outra atividade do dia: entrevista com o correspondente da Globo News, Ariel Palácios.

Seguimos a pé até um café na Recoleta, onde seria o encontro. Durante o caminho, me chamou a atenção o contaste social da cidade. Caminhamos pouco mais de 10 minutos e parece que entramos num outro mundo. Prédios em estilo clássico e calçadas arborizadas davam lugar aos barracos e vias repletas de vira-latas e barro.

A conversa dinâmica e animada com Palácios espantou um pouco o cansaço acumulado durante todo o dia. Ao fim da entrevista, comentei com Claudia da minha decepção em não entrevistar nenhum usuário. A fala dela foi simples e óbvia, mas de suma importância. Não havia porque eu me abalar por aquele detalhe diante de toda a experiência que eu havia acumulado em apenas poder entrar e sair de um local como aquele.

Palácios também ajudou. Contei a minha situação e ele me indicou a igreja que fica em frente à Praça da Constituição, um ponto também famoso pelo uso de drogas. Falou do trabalho dos religiosos e como eles poderiam me orientar.

Acordei por volta das 9 horas e segui de metrô ao local. Era domingo, dia de missa. Em poucos minutos encontrei um grupo de religiosos e voluntários que poderiam me ajudar. Me explanaram todo o trabalho social, o impacto do paco e tudo mais que eu queria ouvir. Novamente pedi ajuda para falar com um usuário e, para minha sorte, havia uma ex-usuária ali mesmo, tomando um café oferecido aos moradores de rua.

Foi inesperado, mas perfeito. Lorena é uma pessoa incrível, com uma história de vício e superação que mais parecem dramalhão mexicano que vida real. Era simpática, me detalhou sua vida. Era a personagem perfeita para minha matéria.

Fui embora perto do meio-dia, na chuva, com frio, pé molhado, mas nada mais importava.

 

Diário Porteño – Gabriel Bossa especial para Jornalismo Sem Fronteiras

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